Das Glasperlenspiel é a obra em que melhor se proclama a supremacia da arte (que é neste caso novamente a música, e é o Jogo, o Jogo das Pérolas de Vidro), sobre qualquer outra forma de realização intelectual e humana. O livro é dedicado «aos peregrinos do Oriente». Mas mesmo sem esta indicação, fácil seria concluir que também este «Jogo» é uma viagem, é a descrição do percurso de um homem em busca de si mesmo, tal como nos outros livros que acabámos de ver. A natureza do Jogo das Pérolas de Vidro é idêntica à natureza da música, é unificadora, harmonizadora de tensões e conflitos. A música tem para Hesse um poder superior ao das outras artes, um valor idêntico ao da moral (por isso é amoral, como já se disse, não se integra, não cabe, em moral nenhuma, transcendendo-as a todas). Nasce do grande Uno. O grande Uno, como se diz no Tao Te Ching, gera os dois pólos. Os dois pólos geram as trevas e a luz. Mas a música relaciona-se com o Uno não dividido. Com a harmonia, com o equilíbrio dos opostos. E permite entender o sentido do mundo. A música repousa na harmonia existente entre o céu e a terra, no acordo entre as trevas e a luz. Funciona nesta obra como símbolo de totalidade, tal como o Jogo, que foi aliás inventado num círculo de músicos e musicólogos, e está portanto ligado à música desde a sua criação, desde o início. O Jogo é o símbolo da actividade intelectual e artística, e da capacidade de meditação mais profunda. «A técnica e a prática da contemplação faziam parte da bagagem de todos os membros da Ordem», diz-nos o narrador (G. W., vol. 9, pág. 38 e segs.). E diz ainda que o Jogo é uma espécie de linguagem universal (pág. 39), cujas regras estão em ligação estreita com as da música, ou as da matemática, e que tem por objectivo supremo harmonizar temáticas, harmonizar idéias que sejam antagônicas. Resumindo, eis o que o Jogo é: uma forma simbólica da busca da perfeição, da completude («Vollkommenheit»), uma «sublime alquimia», uma tentativa de aproximação do Espírito que em si mesmo é uno, quer isto dizer, de Deus (pág. 40). A finalidade do Jogo é, como a da mais pura experiência mística, obter a comunhão com Deus, com o seu espírito, em que toda a multiplicidade se encontra transcendida, em que todas as tensões se encontram resolvidas, em que nada se vive senão o «puro ser», a «plena realidade» (pág. 41).
O Mestre da Música, que é o verdadeiro iniciador de Josef Knecht, faz-lhe ver, no capítulo intitulado «Die Berufung» («A vocação») que o importante, mais ainda do que o Jogo, é aprender a meditar: «eines ist wichtiger ais alies andre: du wirst das Meditieren lernen» («Uma coisa é mais importante do que tudo o resto: vais aprender a meditar.») (pág. 79). Sabendo-se meditar, sabe-se tudo. O resto é dado por acréscimo: «alies andre kommt dann von selbst» («Tudo o resto depois surge por si.»), diz o velho Mestre da Música (ibid). Senta-se ao piano e propõe-lhe, como meditação, que imagine uma forma, um desenho no qual se centre o tema que vai tocar (pág. 80). Knecht assim faz, e depois, com algum esforço, ao fim de algum tempo, consegue desenhar a forma que lhe surgiu durante a meditação. Há uma linha central que ele curva em circunferência, e uma série de linhas laterais que ele ordena em torno dessa linha central, como flores em torno de uma coroa, ou de uma grinalda (pág. 82). Na noite que se segue a este episódio o jovem tem um sonho que é também de caracter simbólico, e em que esta mesma forma de mandala nos surge: o rectângulo dos edifícios da escola transforma-se em oval, depois em círculo, depois numa coroa, e esta começa a andar à roda devagar, até que adquire grande velocidade, rebenta e se dispersa em estrelas cintilantes. Eis, em resumo, e logo no início da «eleição», da vocação descoberta e aceite do herói, o símbolo do que será o seu caminho — do rectângulo da aprendizagem, da escola, à totalidade do círculo e da coroa, e da completude que esta simboliza, à eterna roda da vida, girando cada vez mais depressa e desfazendo-se em estrelas. Ou, por outras palavras, dos anos de aprendizagem aos da maturidade, aos da descoberta da vida como valor em si mesmo, valor que o fará abandonar Kastalien, tornar-se preceptor de um jovem, filho de um amigo seu, e morrer ao tentar com ele a travessia de um lago em más condições de saúde.
É da boca do Mestre da Música que Knecht ouve tudo o que é fundamental não apenas para o Jogo, ou para a música, compreendida no seu sentido mais sublime, mas principalmente para a sua vida. Muito mais tarde, quando o visita e ele está já próximo da morte, Knecht refere-se a ele como «mein Gönner, mein Freund, der, seit ich denken konnte, mein Herz und Vertrauen besass…» («O meu protector, o meu amigo, aquele que desde sempre possuiu o meu coração e a minha confiança…») (capítulo «Im Amte», (pág. 279). O Mestre diz-lhe, por exemplo, que a função dos homens era reconhecer os opostos primeiro na sua qualidade de opostos, mas depois como pólos de uma unidade: «Unsre Bestimmung ist, die Gegensätze richtig zu erkennen, erstens nämlich ais Gegensätze, dann aber ais die Pole einer Einheit… So ist es auch mit dem Glasperlenspiel» (pág. 83) («A nossa função é reconhecer bem os opostos, primeiro enquanto opostos mas em seguida como pólos de uma unidade… O mesmo se dá com o Jogo das Pérolas de Vidro.»). Cada ser humano é apenas um projecto, uma etapa, de outro ser mais perfeito. Mas deve sempre esforçar-se por atingir o centro onde essa perfeição é revelada, em vez de se perder pela periferia (pág. 84). É no centro de si mesmo que o homem pode encontrar a verdade que procura. Porque a verdade existe, o que não existem são ensinamentos rigorosos, absolutos, a verdade vive-se, não se ensina (pág. 85). É dentro de si que ele pode encontrar a divindade, diz-lhe o Mestre: «Die Gottheit ist in dir, nicht in den Begriffen und Büchern. Die Wahreit wird gelebt, nicht doziert» («A divindade está em ti, não nas idéias e nos livros. A verdade tem de ser vivida, não pode ser ensinada.») (pág. 85). Não há livros que o possam ensinar. A vida será a sua mestra, se ele conseguir ser um bom aluno. A vida, como a verdade, é uma conquista difícil, e Josef Knecht terá bastante que lutar até chegar ao fim do seu destino.
Já depois de iniciado no Jogo das Pérolas de Vidro, vive com alguma intensidade a separação que vê existir entre o século e o mundo ascético a que pertence, e várias são as discussões que tem com o seu amigo Plínio a esse respeito. Nesta fase Knecht ainda considera superior a vida contemplativa à vida activa, não sendo capaz de as entender harmoniosamente como o fará mais tarde. Mas já sabemos que toda a oposição deste gênero é simplista e fictícia, sabemo-lo não só pelas palavras do velho Mestre da Música, como por outras obras de Hesse, Demian, por exemplo. Esta não é a via criadora a que Hesse, com os seus heróis, aspira. O mundo do espírito não pode, não deve, recusar o mundo da natureza. O ideal é conseguir conciliá-los, fazer a sua síntese. A meditação, segundo o Mestre da Música, é uma via possível, em que espírito e natureza, espírito e alma, se conciliam, é a fonte onde se pode beber a força da unificação, da harmonia da vida (cap. «Waldzell», pág. 108). Os dois princípios, que Knecht e Plínio incarnam, do mundo do espírito e do mundo da natureza, têm de ser transcendidos numa unidade superior. O Jogo podia ser uma ajuda, quando bem compreendida a sua essência, pois nele tudo conduzia ao centro, à ciência fundamental da unificação dos opostos, do céu e da terra, do Yang e do Yin, do espiritual e do material ou natural no homem (Cf. cap. «Studienjahre», pág. 125). O Jogo é nesta obra de Hesse como que uma prática esotérica, de difícil definição, e tem por objec-tivo, como todos os esoterismos, alcançar o Uno e o Todo, o Absoluto que se basta a si próprio. Absoluto em que o Jogo permite penetrar, absorvendo dentro de si o jogador, quando este leva a bom termo a sua meditação.
Depois de saber que foi feito Magister Ludi (cap. «Magister Ludi», págs. 237-239), Knecht tem uma visão em que o velho Mestre da Música e ele como jovem aluno andam atrás um do outro girando num círculo sem fim. Knecht vê aí o símbolo de Kastalien, jogo da vida dividindo-se em velhos e novos, dia e noite, Yang e Yin. Na medida em que contém velhos e novos, em que contém a mutação da vida, também o mundo de Kastalien é um símbolo de totalidade. O seu ideal é unir harmoniosamente a vida activa e a vida contemplativa, fazer os seus membros participar em ambas (embora em Kastalien se viva isolado do mundo e pouco se conheça dos seus problemas, das suas realidades). Mas este é o ideal de Knecht, da Kastalien de Knecht, tal como ele a deseja e a apresenta, sobretudo ao seu amigo Designori. Quando Josef Knecht e Plínio Designori, passado alguns anos, se voltam a encontrar, esclarece-se melhor este problema da antinomia, da oposição que ambos tinham sentido e vivido entre o mundo normal dos homens e o mundo dos eleitos de Kastalien. Plínio, à sua maneira, também quisera realizar na sua vida uma espécie de síntese, mas tinha falhado, como diz. O corpo e a alma, a realidade e o ideal não são conciliáveis no mundo em que Plínio vive (cap. «Ein Gespräch», págs. 324-325): «Wenn ich im Leben eine Aufgabe und ein Ideal hatte, so war es das, aus meiner Person eine Synthese der beiden Prinzipien zu machen…» (pág. 325); «Ich habe es versucht und bin gescheitert» («Se havia missão e ideal que eu tivesse na vida era o de fazer da minha pessoa uma síntese de ambos os princípios…»; «fiz a tentativa e fracassei.») (ibid). Plínio falhou no seu objectivo, não conseguiu unificar dentro de si Kastalien e o século — o mundo do espírito e o mundo da natureza. É o século que o vence, que o absorve, que o derrota. Com Knecht, em princípio, poder-se-ia ter dado o contrário, e teria sido Kastalien, o puro mundo do espírito, a vencer. Mas também isto, segundo os cânones de Hesse, seria uma derrota. [YCHesse]