Excertos de “O Retorno à Origem”, de Lex Hixon
A carta seguinte indica que Yaeko já assimilou o êxtase da Grande Iluminação. Escreve Yaeko: Minha carta do dia vinte e cinco deve tê-lo feito pensar que fiquei louca … Eu havia alcançado um êxtase tão intenso que não pude ME conter. Quando recobrei os sentidos… caí na risada ao pensar em quão confusas tinham-se tornado minhas emoções. O roshi responde: Você não precisa se censurar. O delírio de felicidade é a reação inicial de todos que tiveram um profundo despertar. Esse delírio é vivenciado durante a sexta fase da Iluminação — O Retorno à Casa no Boi da Verdadeira Natureza — embriagado de um êxtase sutil. Por contrastar de um modo tão impressionante com a experiência cotidiana comum, este êxtase ajuda a sustentar a separação ilusória entre a vida espiritual e a vida corriqueira. Essas duas categorias de experiência precisam desaparecer uma na outra de uma forma tão completa que, num certo sentido, nenhuma subsista. Yaeko prossegue no seu novo nível de lucidez ou maturidade: Estou profundamente consciente da necessidade do aperfeiçoamento individual aplicado e do total entendimento do valor do dokusan. Juro nunca mais escrever algo tão pretensioso como fiz ontem, dizendo que ME tornara iluminada e que por conseguinte podia instruir outras pessoas no dokusan. Diante dessa recusa, da parte de Yaeko, em aceitar a Iluminação, o roshi responde simples e energicamente: Você realmente despertou. Ele continua: Embora a maioria dos devotos leve de cinco a dez anos para alcançar esse estágio, ela o atingiu em menos de uma semana. Yaeko entrou no estágio O Boi e o Eu Esquecidos, que envolve o desaparecimento da ilusão de que a Iluminação é uma condição que se pode reivindicar. Pretensões sutis se dissipam, e até mesmo o papel do sábio iluminado é transcendido.
Na quarta carta de Yaeko para Harada Roshi, essa notável aceleração continua: Perdoe-ME por escrever-lhe tão amiúde. Alcancei o último nível de realização possível quando se é ainda um discípulo. A assimilação equilibrada do êxtase por parte de Yaeko é agora tão intensa, que novos níveis de Iluminação não mais perturbam sua avaliação do aprendizado. O roshi, observando sua segurança altruísta, simplesmente responde: De fato você o alcançou. Yaeko passa a descrever a normalidade do Retorno à Origem, a nona fase da Iluminação. Eu costumam pensar, “Quão grandiosa a pessoa deve se tornar ao atingir a Iluminação” e “Quão admirável é aquele que se dedica totalmente às atividades budistas, pois ele não mais pensa em si”. Mas como eu estava errada! Yaeko compreende que, embora Iluminada, ela é um ser humano comum. A pura atividade budista, agora conscientemente focalizada através dela, é simplesmente sua completa humanidade. Não há nada particularmente sublime nisso. Antes da Iluminação eu ansiava tanto por ela, e costumava pensar, “Como é nobre aquele que volta para Casa com paz e satisfação”. Mas após voltar para casa para a Iluminação total digo agora a mim mesma, “Por que você estava tão alvoroçada a respeito disso tudo?” Porque tenho agora uma nítida aversão a ser chamada de “Iluminada”. O sábio iluminado desapareceu na Origem, deixando apenas um lampejo transcendente de humor, nas palavras de Yaeko: Sinto cócegas ao dizer a mim mesma, “Então é isto a Iluminação total!”
Vimos três tipos de emoção transcendente que irradiam da Iluminação: a compaixão, a gratidão, e agora o riso. Nenhum deles possui objeto ou sujeito e cada um é marcado pela espontaneidade. Embora tenha desaparecido na Origem, Yaeko continua a expressar gratidão: Não consigo lhe dizer quanta gratidão sinto por estar para sempre unida ao verdadeiro Dharma, completa e naturalmente. Não mais se trata de uma prática ou purificação ulterior, como em cartas anteriores, e sim um senso de unidade fluida com o Dharma, ou Verdadeira Natureza. Harada Roshi caracteriza o nível de realização de Yaeko como a condição de absoluta naturalidade na qual a mútua interpenetração do mundo da discriminação e do mundo da igualdade é tão completa que não há consciência de nenhum dos dois. Após desaparecer na Origem, não existe a ignorância fragmentada da discriminação e nem a sabedoria unificadora que percebe a igualdade de todos os fenômenos. No centro do sol, não existe dia nem noite. Como Yaeko dissera numa carta anterior, Estou no centro do Grande Caminho… Tudo é radiância, pura radiância.
Agora, contudo, não apenas o êxtase como também a própria percepção intuitiva desapareceu na Origem. Escreve Yaeko: Esqueci-ME completamente do momento da minha iluminação… Não consigo simplesmente entender por que sempre enfatizei tanto o respeito ao Budismo ou a qualquer pessoa que tenha atingido a Iluminação total. Harada Roshi fez o seguinte comentário a respeito do atual nível de Iluminação–além-da-Iluminação de Yaeko: Aquele que alcançou este grau concluiu toda e qualquer prática Zen que pode ser executada sob a orientação de um mestre e ingressou no caminho da verdadeira prática individual. Yaeko, não mais reivindicando ser independente do seu, tornou-se realmente seu próprio roshi, ou mestre. Ou melhor, a Mente Original tornou-se seu guia.
Embora não exista um Buda separado, uma intensa reverência e gratidão flui na direção do ser que transmite esse entendimento. Yaeko escreve: Graças a você, percebi claramente que o Buda nada mais é do que a Mente. Minha gratidão não tem limites. Isso se deve tanto à sua orientação benevolente quanto ao meu intenso anseio e esforço de alcançar a condição búdica para que eu possa salvar todos os seres vivos. Responde o roshi: Eu não pensara em você como alguém com uma aspiração tão forte e fora do comum à condição búdica. Como pude ter tão pouco discernimento! É evidente que você é a encarnação de um grande Bodhisattava!
Nesse ponto, torna-se claro para o roshi que Yaeko está se apoiando em vidas anteriores de prática espiritual e que ela está voltada para além dos diversos níveis de Iluminação, para a condição búdica, cujo despertar é vislumbrado na décima, e última, imagem do Pastoreio do Boi. A condição búdica constitui um fluxo de poder supremo. O voto compassivo de salvar todos os seres vivos pode ser gradualmente cumprido, momento por momento ou a cada vida, pelo Bodhisattava, ou o ser que está atravessando os vários níveis da Iluminação. Esse voto, porém, pode ser cumprido instantaneamente por um Buda, que vê todos os seres como já sendo Budas. Todos os seres já estão salvos, afirma o Buda vivo. O verdadeiro poder espiritual liberado por essa afirmação permeia sutilmente a consciência de todos os seres e intensifica, perceptivelmente, sua energia evolucionária. Esta afirmação, que é a condição búdica, já é a Verdadeira Natureza de cada ser vivo. Quando Yaeko, ou antes dela Harada, penetra na condição búdica consciente, essa afirmação sem início da Verdadeira Natureza é mais uma vez confirmada. Yaeko entrou no Mercado com Mãos Bondosas. A afirmação da Verdadeira Natureza irradia espontaneamente dela, fazendo florescer incontáveis devotos e praticantes. Neste exato momento estamos sendo tocados pela sua transmissão.
Para Yaeko, no auge da Iluminação, não mais aparece qualquer professor aspirante, ou transmissão. Segundo ela revela a Harada Roshi, todos os níveis da Iluminação desapareceram no toda, Tada significa literalmente em japonês somente ou apenas. Eis o conselho do mestre Zen: Quando comer, simplesmente coma. Quando caminhar, simplesmente caminhe. Tada é a perfeita transparência expressa através do cotidiano. Tada é apenas a condição búdica, somente a Verdadeira Natureza. Não existe nada mais. Yaeko escreve: Quando mais avanço no Caminho Supremo, mais sublime ele se torna. Eu vivencio que o tada é a perfeição. Todo senso de fazer é deixado para trás no tada, e contudo nenhum detalhe de qualquer esfera celestial ou terrestre é deixado de lado pelo tada, que é carinhoso e cuidadoso. Nas palavras de Yaeko, prometo a mim mesma agir com supremo cuidado em todos os detalhes da minha vida. Não é apenas cada ser sensível que está sendo o Buda, cada detalhe é o Buda.
Dois dias depois de atingir a total realização de ser Buda, Yaeko faleceu. Ela desapareceu totalmente no tada. Somente ao tada podemos oferecer nossa profunda gratidão.
Estou no centro do Grande Caminho, onde tudo é natural, sem esforço, sem pressa ou hesitação. Não consigo lhe dizer quanta gratidão sinto por estar para sempre unida ao verdadeiro Dharma, completa e naturalmente. Sinto cócegas ao dizer para mim mesma, “Então é isto a total Iluminação!” — Yaeko