Hulin (PEPIC:9-11) – a noção de ahamkara nos Upanishads

É claro que não se trata de estudar a noção de ahamkara ao longo de toda a história do pensamento indiano, e tivemos que distinguir, antes de tudo, entre as doutrinas nas quais ahamkara é orgânica e aquelas que a adotaram secundariamente em um período mais ou menos tardio. É indiscutível que, a partir do século V ou VI d.C., essa noção se tornou tão popular que passou a fazer parte do patrimônio comum do pensamento indiano, e que ninguém pensou em questionar a validade da análise metafísica que, apesar de tudo, ela pressupõe. Assim, perdeu gradualmente seu papel primitivo como conceito e se tornou uma espécie de substantivo comum que designa uma determinada estrutura, um órgão, sobre cuja função exata podem persistir diferenças de opinião, mas cuja existência de fato parece ser imposta a todos. Esse aspecto petrificado, ou essa função postiche, não é a primeira coisa a chamar nossa atenção.

É nos Upanishads que o termo aparece pela primeira vez, embora de forma muito discreta e episódica. De qualquer forma, para nós, esses textos são os primeiros em que o problema geral da individuação, visto do ponto de vista da “salvação” ou, pelo menos, da transição para um modo transcendente de ser, se desdobra em toda a sua amplitude. Embora ainda não sejam filosofia no sentido técnico do termo, não poderíamos deixá-los de lado, pois seu excepcional poder de sugestão muitas vezes nos ajuda a entender a literatura posterior, tanto aquela que, tomando-os por Revelação, é composta por seus comentários perpétuos, quanto aquela cujos vínculos com eles são, superficialmente, menos fortes.

Supõe-se que os Upanishads, a parte especulativa e mística do Veda, constituam sua conclusão — anta —; seus ensinamentos ganham forma no Vedanta, um dos seis sistemas reconhecidos pela ortodoxia brâmane posterior. O próprio Vedanta é dividido em várias escolas, mas a escola mais importante, tanto a mais antiga — daquelas, pelo menos, cujas produções chegaram até nós — quanto a mais influente, continua sendo a fundada pelo ilustre Shankara, a Advaita ou doutrina da não-dualidade. É dentro desse sistema que a noção de ahamkara foi desenvolvida com o maior rigor, discernimento e consistência. Portanto, seu exame formará a espinha dorsal do presente trabalho. Começando com o fundador da escola, abrangerá o trabalho de seus principais continuadores até por volta do século XI. As razões pelas quais não pareceu aconselhável considerar os desenvolvimentos posteriores do sistema serão explicadas a seguir.

Entretanto, o Advaita é um retardatário entre os sistemas ortodoxos. Cerca de quinze séculos se passaram entre seu início (no século VII) e os primeiros Upanishads. Nesse meio tempo, ocorreu um fenômeno de grande alcance: o surgimento do budismo e, em segundo lugar, do jainismo. Esses movimentos, especialmente o budismo, podem ser interpretados, em parte, como uma reação, originada em círculos renunciantes alheios ao ritualismo bramânico, contra uma certa maneira pela qual os ensinamentos dos Upanishads foram levados na direção de um imoralismo mágico da manipulação das forças cósmicas em benefício da vontade de poder individual. Uma doutrina tão famosa como a da negação do atman deriva diretamente dessa preocupação. E não é exagero dizer que foi esse questionamento radical de sua prática mágico-ritualística que forçou os brâmanes a se aventurarem no campo da reflexão filosófica. Os darshana (“sistemas”) clássicos que não o Vedanta shankariano — e que o precederam em seu desenvolvimento — são todos respostas a esse desafio, respostas que são mais ou menos adequadas, dependendo da profundidade da agitação produzida pela doutrina da “ausência de Si” nos vários meios envolvidos. Como o Advaita é apenas a última e mais apropriada dessas respostas, não poderíamos vinculá-lo diretamente aos Upanishads sem antes esclarecer a doutrina budista do “não-Si” e seu impacto no bramanismo. O surgimento da noção de ahamkara é, de fato, inseparável dessas reações bramânicas pré-shankarianas.

Mas o Advaita é, sem dúvida, muito marcado por sua luta contra o budismo, com o excesso de privação ascética que isso implica, para restaurar em sua totalidade o conteúdo da mensagem Upanishadica. É por isso que pensamos que seria interessante apresentar, como contraponto, outra atitude, aquela incorporada na forma não ortodoxa do hinduísmo conhecida como “tantrismo”, que se propôs a destacar o aspecto positivo do fenômeno do ego, em oposição a todo ascetismo. É certo que essa literatura se refere principalmente a seus próprios textos revelados (os Tantras, na verdade), mas há motivos para acreditar que, em profundidade, ela se inspira, consciente ou inconscientemente, nas mesmas fontes que as passagens do Upanishad que glorificam o Eu indestrutível “daquele que sabe”. Abordado aqui com base no exemplo fornecido pelo xivaísmo de Caxemira, o tantrismo é um fenômeno vasto e complexo demais para um estudo exaustivo. Ele revela um estado mental que é irredutível ao da Advaita, mas não tenta explorar todas as suas origens cosmológicas e ontológicas.

Uma tendência importante no hinduísmo permanece fora de nosso campo de investigação. Essa é a doutrina de bhakti ou “devoção” (lit. “participação (de amor)”). Na medida em que são organizadas em torno de um relacionamento Eu-Tu, um diálogo de pessoa para pessoa entre o Senhor e seu devoto, elas não têm a intenção de desenvolver uma doutrina original de ahamkara, seja no sentido de aniquilação ou exaltação do eu. Certamente não ignoramos que a realidade histórica é sempre mais complexa do que nossas distinções bem definidas e que, por exemplo, bhakti está aliada a Advaita no Bhakti-rasayana de Madhusudana Sarasvati, e também está aliada ao tantrismo em caxemires como Utpaladeva e Bhattanarayana, mas não achamos necessário sobrecarregar a apresentação mencionando essas atitudes mistas, independentemente de seu interesse intrínseco.

HULIN, M. Le principe de l’ego dans la pensée indienne classique: la notion d’ahamkara. Paris: Vrin., 1978.

Buda, Michel Hulin (1936), Sankara (séc. VIII), Xivaísmo de Caxemira