A temporalidade como esgarçamento e arrancamento a si mesmo, como a impossibilidade de toda coexistência das experiências vividas do sujeito, se dá como a própria negação de toda essa possessão e concentração de si no instante que define o vimarśa. A filosofia do Trika, portanto, tem que mostrar que essa temporalidade está enraizada em um presente eterno, onde o próprio sujeito acabado está para sempre instalado, de modo que o arranjo de sua experiência de acordo com o antes e o depois, seu limite de tempo, são pura aparência. Um dos textos mais esclarecedores a esse respeito é o seguinte: “A causa do julgamento: ‘esta coisa aparece pela primeira vez’ é este (outro) julgamento: ‘este jarro não apareceu antes’, a qual sempre incluirá uma lembrança, seja ela qual for, relativa a um passado particular da manifestação deste jarro. Caso contrário, as noções ‘antes’ e ‘não aparecido’ não seriam possíveis, dada a ausência de uma representação deste passado. E a causa desta lembrança é uma experiência direta deste tempo privado da manifestação do jarro … Quando, portanto, percebemos: ‘Eu, sujeito consciente, eu existo agora, mas não existia antes’, implica uma lembrança deste tempo passado; e esta lembrança, por sua vez, envolve a experiência direta da época. Assim, é refutada (a opinião) do sujeito consciente de que ele não existia e não se manifestou no passado. Dizer: ‘Na época do Avatar Rāma, eu não existia’, é afirmar sua própria experiência direta da época. Dirias que o conhecimento deste tempo é fornecido pela Tradição Religiosa? – Mas a própria tradição supõe a existência daquele que conheceu (estes acontecimentos) e os relaciona … – Sem dúvida, mas este sujeito consciente era Vālmīki, e não alguém do nosso tempo! – Objeção relevante, mas isso até demonstra a existência do sujeito que eternamente se recolhe como eu. Este sujeito conhecedor é, na verdade absoluto, único. Múltiplos e distintos, por outro lado, são os corpos, seus componentes, impurezas e intelectos. É por causa desta multiplicidade que falamos do sujeito conhecedor como múltiplo. Portanto, a verdade é que, finalmente, na época (de Rama), apenas meu corpo de hoje não existia”1
À primeira vista, reconhecemos que um tal raciocínio tem o efeito de uma falácia pura e simples. Para dizer: “o jarro só se manifesta agora; antes ele não existia”, é certamente dar prova, pela lembrança, de sua própria existência no passado. Ainda assim, só pode se tratar de um passado com limites tacitamente definidos, não a infinidade do tempo decorrido. Mas, admitindo que esse raciocínio é válido para um objeto como o jarro, sua aplicação à pessoa do sujeito conhecente parece ilegítima. Aquele que afirma: “A tal época eu não existia” não tem consciência de recorrer à sua lembrança; ele se baseia em várias pistas, testemunhos seu se sobrepõem, etc., para concluir que sua data de nascimento é posterior a esta época. Por outro lado, não é por abuso de linguagem que nos identificamos com personagens do passado, como Vālmīki, sob o pretexto de que eles também disseram “eu”? De fato, todas estas objeções traduzem apenas um certo postulado: o Eu seria uma forma vazia, aplicável a toda a individualidade, ou seja, a qualquer agrupamento estável de qualidades físicas e psíquicas, a qualquer conjunto coerente de hábitos e comportamento organizado. E, nesse caso, de fato, os Eu, puros epifenômenos das individualidades objetivas, se sucederiam no tempo – e coexistiriam no espaço – sem minimamente se interpenetrar. Vālmīki e “mim mesmo” só teriam em comum que eles pertencem à mesma jāti, aquela do sujeito conhecente em geral. Mas uma individualidade, enquanto ela não exista “para si mesma”, não se tome ela mesma a cargo, nem se totalize desde o interior, permanece uma coleção inerte, constituída por um olhar externo a ela mesma, logo a todo instante dissociável. Ora, esta maneira de se pôr a si mesmo em sujeito não é outra senão o verdadeiro aham-kāra. O Eu é, portanto, anterior à própria individualidade, posto que a funda. Antes disso, é ipso facto à constelação particular de fatores que definem essa individualidade e a situam em um certo lugar do espaço e em um certo momento do tempo. O Eu é, portanto, por essência, único e forma o sujeito universal concreto: enquanto puros “eu”, nós todos, Vālmīki etc., não formamos senão uma só e mesma pessoa. A rigor, é claro, não consigo “lembrar” que não ter existido no tempo de Rāma – isto que seria uma contradição em termos –, mas a memória de fato designa aqui apenas a capacidade primária do Eu de fazer existir a dimensão do passado (e do futuro) e, portanto, de dominá-lo pelo olhar.
A surgimento original do Eu ocorre, portanto, em um puro presente no interior do qual os sujeitos conscientes – que constituem o “lugar” desta aparição – ainda não se distinguem uns dos outros. No entanto, convém todavia opor-se a este puro aham, que não está no tempo, um ego empírico constituído e submetido, como tal, à temporalidade. “Em todas as coisas (externas), tecidas de unidade e multiplicidade, aparece uma sucessão temporal que toma a forma seguinte: ela em por fundamento a diversidade, feita da existência e da inexistência (alternadas) dos fenômenos elementares (ābhāsa), e não se manifesta senão ao (sujeito condicionado pelo) corpo, a buddhi, as impurezas, o vazio, etc. Este gênero de sujeito não se manifesta de maneira contínua, pois a manifestação não pertence à sua essência: fundamentalmente, é tão inconsciente quanto o azul, etc. Sua manifestação é uma certa cintilação da (luz da) consciência e, quando isto faz falta, por exemplo, quando o corpo cessa de funcionar no sono profundo ou no impuro e o vazio (no desvanecimento), esta manifestação (do sujeito limitado) é interrompida. Assim, a existência e a inexistência de fenômenos elementares condicionam a temporalidade: “enquanto manifestado sob a forma de um corpo de criança não sou mais, (mas) existo presentemente, manifestado sob a forma de um corpo de um homem jovem”. E este sujeito conhecedor, por sua vez, porque investido em uma consciência incompleta de seu eu, faz aparecer a sucessão temporal nas próprias coisas (externas): “Eu era criança, e esse jarro se manifestava ao mesmo tempo que eu”. Assim não se passa para o (sujeito manifestado) “de uma vez por todas”. Designa-se por aí Conhecente feito de consciência, à manifestação ininterrupta, no seio do qual o tempo não escoa. E, em relação a ele, o conjunto dos objetos também não comporta também uma sucessão, manifesto que é na sua união a ele “2.
Este último texto poderia, a rigor, ter sido escrito por um Advaitin. Ele sublinha com efeito, com particular clareza, a diferença do sujeito temporal finito e do Eu absoluto, intemporal, que se seria tentado a assimilar ao atman. Mas sucumbir a esta tentação seria o mesmo que perder de vista o que faz a originalidade mesma do Trika: o Eu limitado não é aqui senão a forma “incompleta” – apūrna – do Eu absoluto, e não uma forma factícia, sobre-imposta a um atman ao qual velaria a realidade própria. E eis bem porque o Trika acredita que pode descerrar na mobilidade inquieta da consciência empírica (desejo, expectativa, recapitulação incessante do passado, etc.) a presença do spanda, o dinamismo mesmo do absoluto. O tempo psicológico vivido e o tempo cósmico não representam aqui a pura e simples ilusão em face da eternidade estática da pura consciência recolhida nela mesma. De um plano a outro, a diferença é ainda mais aquela de uma temporalidade “grosseira” (marcada pelos caracteres de irreversibilidade e de fixidez das relações causa–efeito, pela constituição de ritmos e periodicidade, etc.) e de uma temporalização “sutil”, espécie de vibração imperceptível que anima desde o interior o tempo constituído e o impede de se fixar em um “devir objetivo”, observável do exterior: a ilhota do tempo não é algo que escoa – o que levaria a uma regressão ao infinito – mas não é além do mais redutível a um conjunto de relações estáticas3.
IPVV (introdução), vol. I p. 63 sq. Ver R. Gnoli, La Luce delle Sacre Scritture, p. 29. ↩
IPV, II I 6, vol. II, p. 19 sq. O Trika chama “vazio” este fantasma de um objeto – designado como “trevas” no Advaita – que contempla ainda o homem adormecido”. ↩
No § 36 de suas “Palestras sobre a fenomenologia da consciência íntima” Husserl observa: “Este fluxo é algo que chamamos assim de acordo com o (tempo) constituído. Mas não é nada temporalmente “objetivo”. É a subjetividade absoluta e possui as propriedades disto que se deixa descrever, em termos imagéticos, como se espraiando, jorrando em uma atualidade pontual, em um ponto–fonte originário, em um “agora”. Na experiência de atualidade temos (ao mesmo tempo) o ponto–fonte originário e a continuidade dos momentos de repercussão. Para tudo isso, nos faltam palavras”. Uma destas palavras pode ser spanda. Além disso, é certo que a distinção bergsoniana entre duração pura e tempo espacializado concerne de perto este mesmo tema. ↩