Hulin (PEPIC:296-300) – temporalidade e “eu”

A temporalidade como esgarçamento e arrancamento a si mesmo, como a impossibilidade de toda coexistência das experiências vividas do sujeito, se dá como a própria negação de toda essa possessão e concentração de si no instante que define o vimarśa. A filosofia do Trika, portanto, tem que mostrar que essa temporalidade está enraizada em um presente eterno, onde o próprio sujeito acabado está para sempre instalado, de modo que o arranjo de sua experiência de acordo com o antes e o depois, seu limite de tempo, são pura aparência. Um dos textos mais esclarecedores a esse respeito é o seguinte: “A causa do julgamento: ‘esta coisa aparece pela primeira vez’ é este (outro) julgamento: ‘este jarro não apareceu antes’, a qual sempre incluirá uma lembrança, seja ela qual for, relativa a um passado particular da manifestação deste jarro. Caso contrário, as noções ‘antes’ e ‘não aparecido’ não seriam possíveis, dada a ausência de uma representação deste passado. E a causa desta lembrança é uma experiência direta deste tempo privado da manifestação do jarro … Quando, portanto, percebemos: ‘Eu, sujeito consciente, eu existo agora, mas não existia antes’, implica uma lembrança deste tempo passado; e esta lembrança, por sua vez, envolve a experiência direta da época. Assim, é refutada (a opinião) do sujeito consciente de que ele não existia e não se manifestou no passado. Dizer: ‘Na época do Avatar Rāma, eu não existia’, é afirmar sua própria experiência direta da época. Dirias que o conhecimento deste tempo é fornecido pela Tradição Religiosa? – Mas a própria tradição supõe a existência daquele que conheceu (estes acontecimentos) e os relaciona … – Sem dúvida, mas este sujeito consciente era Vālmīki, e não alguém do nosso tempo! – Objeção relevante, mas isso até demonstra a existência do sujeito que eternamente se recolhe como eu. Este sujeito conhecedor é, na verdade absoluto, único. Múltiplos e distintos, por outro lado, são os corpos, seus componentes, impurezas e intelectos. É por causa desta multiplicidade que falamos do sujeito conhecedor como múltiplo. Portanto, a verdade é que, finalmente, na época (de Rama), apenas meu corpo de hoje não existia”1

À primeira vista, reconhecemos que um tal raciocínio tem o efeito de uma falácia pura e simples. Para dizer: “o jarro só se manifesta agora; antes ele não existia”, é certamente dar prova, pela lembrança, de sua própria existência no passado. Ainda assim, só pode se tratar de um passado com limites tacitamente definidos, não a infinidade do tempo decorrido. Mas, admitindo que esse raciocínio é válido para um objeto como o jarro, sua aplicação à pessoa do sujeito conhecente parece ilegítima. Aquele que afirma: “A tal época eu não existia” não tem consciência de recorrer à sua lembrança; ele se baseia em várias pistas, testemunhos seu se sobrepõem, etc., para concluir que sua data de nascimento é posterior a esta época. Por outro lado, não é por abuso de linguagem que nos identificamos com personagens do passado, como Vālmīki, sob o pretexto de que eles também disseram “eu”? De fato, todas estas objeções traduzem apenas um certo postulado: o Eu seria uma forma vazia, aplicável a toda a individualidade, ou seja, a qualquer agrupamento estável de qualidades físicas e psíquicas, a qualquer conjunto coerente de hábitos e comportamento organizado. E, nesse caso, de fato, os Eu, puros epifenômenos das individualidades objetivas, se sucederiam no tempo – e coexistiriam no espaço – sem minimamente se interpenetrar. Vālmīki e “mim mesmo” só teriam em comum que eles pertencem à mesma jāti, aquela do sujeito conhecente em geral. Mas uma individualidade, enquanto ela não exista “para si mesma”, não se tome ela mesma a cargo, nem se totalize desde o interior, permanece uma coleção inerte, constituída por um olhar externo a ela mesma, logo a todo instante dissociável. Ora, esta maneira de se pôr a si mesmo em sujeito não é outra senão o verdadeiro aham-kāra. O Eu é, portanto, anterior à própria individualidade, posto que a funda. Antes disso, é ipso facto à constelação particular de fatores que definem essa individualidade e a situam em um certo lugar do espaço e em um certo momento do tempo. O Eu é, portanto, por essência, único e forma o sujeito universal concreto: enquanto puros “eu”, nós todos, Vālmīki etc., não formamos senão uma só e mesma pessoa. A rigor, é claro, não consigo “lembrar” que não ter existido no tempo de Rāma – isto que seria uma contradição em termos –, mas a memória de fato designa aqui apenas a capacidade primária do Eu de fazer existir a dimensão do passado (e do futuro) e, portanto, de dominá-lo pelo olhar.

A surgimento original do Eu ocorre, portanto, em um puro presente no interior do qual os sujeitos conscientes – que constituem o “lugar” desta aparição – ainda não se distinguem uns dos outros. No entanto, convém todavia opor-se a este puro aham, que não está no tempo, um ego empírico constituído e submetido, como tal, à temporalidade. “Em todas as coisas (externas), tecidas de unidade e multiplicidade, aparece uma sucessão temporal que toma a forma seguinte: ela em por fundamento a diversidade, feita da existência e da inexistência (alternadas) dos fenômenos elementares (ābhāsa), e não se manifesta senão ao (sujeito condicionado pelo) corpo, a buddhi, as impurezas, o vazio, etc. Este gênero de sujeito não se manifesta de maneira contínua, pois a manifestação não pertence à sua essência: fundamentalmente, é tão inconsciente quanto o azul, etc. Sua manifestação é uma certa cintilação da (luz da) consciência e, quando isto faz falta, por exemplo, quando o corpo cessa de funcionar no sono profundo ou no impuro e o vazio (no desvanecimento), esta manifestação (do sujeito limitado) é interrompida. Assim, a existência e a inexistência de fenômenos elementares condicionam a temporalidade: “enquanto manifestado sob a forma de um corpo de criança não sou mais, (mas) existo presentemente, manifestado sob a forma de um corpo de um homem jovem”. E este sujeito conhecedor, por sua vez, porque investido em uma consciência incompleta de seu eu, faz aparecer a sucessão temporal nas próprias coisas (externas): “Eu era criança, e esse jarro se manifestava ao mesmo tempo que eu”. Assim não se passa para o (sujeito manifestado) “de uma vez por todas”. Designa-se por aí Conhecente feito de consciência, à manifestação ininterrupta, no seio do qual o tempo não escoa. E, em relação a ele, o conjunto dos objetos também não comporta também uma sucessão, manifesto que é na sua união a ele “2.

Este último texto poderia, a rigor, ter sido escrito por um Advaitin. Ele sublinha com efeito, com particular clareza, a diferença do sujeito temporal finito e do Eu absoluto, intemporal, que se seria tentado a assimilar ao atman. Mas sucumbir a esta tentação seria o mesmo que perder de vista o que faz a originalidade mesma do Trika: o Eu limitado não é aqui senão a forma “incompleta” – apūrna – do Eu absoluto, e não uma forma factícia, sobre-imposta a um atman ao qual velaria a realidade própria. E eis bem porque o Trika acredita que pode descerrar na mobilidade inquieta da consciência empírica (desejo, expectativa, recapitulação incessante do passado, etc.) a presença do spanda, o dinamismo mesmo do absoluto. O tempo psicológico vivido e o tempo cósmico não representam aqui a pura e simples ilusão em face da eternidade estática da pura consciência recolhida nela mesma. De um plano a outro, a diferença é ainda mais aquela de uma temporalidade “grosseira” (marcada pelos caracteres de irreversibilidade e de fixidez das relações causa-efeito, pela constituição de ritmos e periodicidade, etc.) e de uma temporalização “sutil”, espécie de vibração imperceptível que anima desde o interior o tempo constituído e o impede de se fixar em um “devir objetivo”, observável do exterior: a ilhota do tempo não é algo que escoa – o que levaria a uma regressão ao infinito – mas não é além do mais redutível a um conjunto de relações estáticas3.


  1. IPVV (introdução), vol. I p. 63 sq. Ver R. Gnoli, La Luce delle Sacre Scritture, p. 29. 

  2. IPV, II I 6, vol. II, p. 19 sq. O Trika chama “vazio” este fantasma de um objeto – designado como “trevas” no Advaita – que contempla ainda o homem adormecido”. 

  3. No § 36 de suas “Palestras sobre a fenomenologia da consciência íntima” Husserl observa: “Este fluxo é algo que chamamos assim de acordo com o (tempo) constituído. Mas não é nada temporalmente “objetivo”. É a subjetividade absoluta e possui as propriedades disto que se deixa descrever, em termos imagéticos, como se espraiando, jorrando em uma atualidade pontual, em um ponto-fonte originário, em um “agora”. Na experiência de atualidade temos (ao mesmo tempo) o ponto-fonte originário e a continuidade dos momentos de repercussão. Para tudo isso, nos faltam palavras”. Uma destas palavras pode ser spanda. Além disso, é certo que a distinção bergsoniana entre duração pura e tempo espacializado concerne de perto este mesmo tema. 

Michel Hulin (1936)