Huxley Personalidade

Aldous Huxley — A FILOSOFIA PERENE
Personalidade
A palavra “personalidade” é originada do Latim e suas derivadas superiores são, no mais alto grau, respeitáveis. Por alguma estranha razão filológica, a palavra saxônia correspondente a “personalidade” é raramente usada. O que é uma pena. Pois se fosse usada — tão correntemente como belch (arroto) é aplicado em vez de eructation (erutação) — será que as pessoas fariam tanta celeuma acerca da coisa descrita como certos filósofos, moralistas e teólogos têm feito recentemente? Afirma-se constantemente que “personalidade” é a mais alta forma de realidade que podemos conhecer. Mas, certamente, as pessoas pensariam duas vezes ao fazer ou aceitar esta afirmação, se em vez de “personalidade” a palavra empregada fosse o sinônimo teutônico selfness (egoísmo). Pois Selfness, embora signifique exatamente o mesmo, não leva consigo nenhum daqueles matizes de categoria superior que vão juntos com “personalidade”. Ao contrário, seu significado primário chega a nós embebido em discórdias, soando como a nota de um sino quebrado. Os expoentes da Filosofia Perene constantemente insistem que a obsessiva e obstinada consciência humana de separatividade é o mais formidável obstáculo ao conhecimento unitivo de Deus. O “ser”, para eles, é o pecado original, e morrer para o “ser”, em sensações, vontade e intelecto, é a virtude final e abrangente. É a memória dessas frases que produz os matizes desfavoráveis aos quais a palavra selfness está associada. Os tons favoráveis da palavra “personalidade” são evocados, em parte, pela latinidade solene, e também, por reminiscências do que se tem dito a respeito das “pessoas” da Trindade. Mas as pessoas da Trindade não têm nada em comum com pessoas de carne e osso de nosso conhecimento diário — nada, exceto o Espírito interior com o qual queremos e somos impelidos a nos identificar, mas que a maioria prefere ignorar em favor da sua personalidade separada. É pena que essa divindade oculta e antiespiritual da personalidade tenha recebido o mesmo nome que se aplica ao Deus que está no Espírito. Como todos os outros enganos, é possível que este tenha sido, obscura e subconscientemente, cometido de forma voluntária e determinada. Nós amamos nossa personalidade; gostamos de ser justificados no nosso amor; por essa razão a crismamos com o mesmo nome aplicado pelos teólogos ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo.

Qual a natureza desse “malcheiroso pedaço” de egoísmo ou personalidade, que tem de se arrepender tão apaixonadamente e tão completamente morrer antes que possa haver um verdadeiro conhecimento de Deus na pureza do espírito? A mais seca e cautelosa das hipóteses é a de Hume. “A humanidade”, diz ele, “nada mais é que um feixe ou conglomerado de diferentes percepções, que se sucedem umas às outras com uma rapidez inconcebível, e estão em perpétuo fluxo e movimento”. Uma resposta quase idêntica foi dada pelos budistas, cuja doutrina de anatta é a negação de qualquer alma permanente, existente atrás do fluxo da experiência e das várias skandhas psicofísicas (em íntima correspondência com os “feixes” de Hume), que constituem os mais perduráveis elementos da personalidade. Hume e os budistas dão uma descrição suficientemente realista do egoísmo em ação; mas não explicam como e por que os feixes se tornaram feixes. Porventura os seus átomos constitutivos da experiência ajuntaram-se de comum acordo? E, se assim for, por que e por que meios e dentro de que espécie de universo não espacial? Dar uma resposta plausível a estas questões, em termos de anatta, é tão difícil que fomos forçados a abandonar a doutrina em favor da noção de que, atrás do fluxo e dentro dos feixes, existe uma espécie de alma permanente, através da qual a experiência é organizada e que, em troca, faz uso dessa experiência organizada para se tornar uma criatura particular e uma personalidade única. Este é o ponto de vista do hinduísmo ortodoxo, do qual o Budismo compartilhou, bem como todo o pensamento europeu desde a época anterior a Aristóteles até os dias atuais. Considerando que a maioria dos pensadores contemporâneos tentam descrever a natureza humana em termos de uma dicotomia resultante da interação da psique e do físico, ou uma inseparável totalidade desses dois elementos dentro de seres particulares corporificados, todos os expoentes da Filosofia Perene fazem, de uma ou outra forma, a afirmação de que o homem é uma espécie de trindade composta de corpo, psique e espírito. O egoísmo ou personalidade é um produto dos dois primeiros elementos. O terceiro elemento (aquele quidquid increatum et increabile, como Eckhart o chamava) é semelhante, ou mesmo idêntico ao espírito divino que é a Base de todos os seres. A finalidade última do homem, a finalidade da sua existência, é amar, conhecer e unir-se à Divindade imanente e transcendente. E essa identificação do ser com um não-ser espiritual só pode ser alcançada “morrendo” para o egoísmo e vivendo para o espírito.



Aldous Huxley