Schuon (FSCI) – Islã – Civilização

  • O Islã é um “espaço” e não um “tempo”
  • A norma humana para toda civilização tradicional é, não o homem mergulhado na ilusão, mas o santo desligado do mundo e ligado a Deus
  • Das duas “metades” da vida de um povo
  • O que se esquece quando se compara a civilização moderna e as civilizações tradicionais
  • Sobre qual base uma civilização tem valor?
  • Distinção entre degenerescência, decadência e desvirtuação
  • Que significa, em nossos dias, a exigência que a religião deve se orientar para o social?
  • “A lentidão é de Deus, e a pressa de Satã”, consideração sobre o ritmo de vida imposto pelas máquinas

Como todas as civilizações tradicionais, o Islã é um “espaço”, não um “tempo”, para o Islã o “tempo” é só a corrupção desse “espaço”. “Não virá nenhum período que não seja pior que o precedente”, predisse o Profeta. O “espaço”, essa tradição invariante — invariante apesar do brotar e diversificar de formas na época da elaboração inicial da tradição — circunda a humanidade muçulmana como um símbolo, como o mundo físico que invariável e imperceptivelmente nos nutre com seu simbolismo. É normal que a humanidade viva num símbolo, que é um indicador apontado para o Céu, uma abertura para o Infinito. A ciência moderna rasgou as fronteiras protetoras desse símbolo e, assim fazendo, destruiu o próprio símbolo; aboliu assim esse indicador, essa abertura; da mesma forma como quando o mundo moderno invade os espacos-símbolo constituídos pelas civilizações tradicionais. O que o mundo moderno denomina “estagnação” e “esterilidade” é na realidade homogeneidade e continuidade do símbolo1 . Quando um muçulmano ainda autêntico diz aos protagonistas do progresso.” “Tudo que vos falta agora é abolir a morte”, ou quando pergunta: “Podeis impedir o sol de se pôr ou coagi-lo a nascer?”, ele expressa exatamente o que reside na raiz da “esterilidade” islâmica: um maravilhoso senso de relatividade e, o que equivale à mesma coisa, um senso do Absoluto dominando toda a sua vida.

A fim de entender as civilizações tradicionais em geral, o Islã em particular, é necessário também levar em consideração o fato de que a forma humana é, para elas, não o homem comum profundamente imerso em ilusão, mas o santo, desprendido do mundo e dedicado a Deus; somente ele é inteiramente “normal” e só ele goza, nesse aspecto, “total direito” a existir; é essa perspectiva que lhes dá uma certa falta de sensibilidade em relação à natureza humana comum. Como essa natureza humana é grandemente insensível ao Bem soberano, deveria ao menos temer aquele Deus, na medida em que não Lhe tem amor.

Na vida de um povo há como que duas metades: uma constitui o papel de sua existência terrena, a outra, sua relação com o Absoluto. O que determina o valor de um povo ou de uma civilização não é a forma literal de seu sonho terreno — já que aqui tudo é só um símbolo — mas sua capacidade de “sentir” o Absoluto e, no caso de almas especialmente privilegiadas, atingir o Absoluto. Logo, é completamente ilusório desprezar essa dimensão “absoluta” e avaliar um mundo humano de acordo com critérios terrenos, como ao comparar em termos materiais uma civilização com outra. A lacuna de alguns milhares de anos que separam a idade da pedra dos peles-vermelhas do refinamento literário e material do homem branco não conta nada, comparados com a inteligência contemplativa e as virtudes, as únicas a dar valor ao homem e compor sua realidade permanente, ou aquilo que nos capacita a avaliá-lo de modo real, como se fosse com os olhos do Criador. Acreditar que alguns homens são “atrasados” em relação a nós porque seu sonho terreno admite modalidades mais “rudimentares” que o nosso — modalidades que frequentemente são, pelo mesmo motivo, mais sinceras — é muito mais ingênuo do que acreditar que a Terra é plana ou que um vulcão é um deus. A mais ingênua das atitudes é certamente considerar o sonho como algo absoluto e sacrificar a ele todos os valores substanciais, enquanto que aquilo que é “sério” só principia acima de seu nível, ou melhor, que se há algo “sério” neste mundo, só o é em termos do que está além dele.

E frequente o contraste entre a civilização moderna, como forma de pensamento ou cultura, e as civilizações tradicionais, mas é esquecido que o pensamento moderno, ou a cultura que o engendra, é somente um fluxo indeterminado, que não pode ser julgado positivamente porque não possui nenhum princípio real e, portanto, relacionado com o Imutável. O pensamento moderno não é, em nenhum juízo definitivo, uma doutrina entre outras; é o resultado de uma fase particular de seu próprio desdobramento e se tornará aquilo que a ciência materialista e experimental, ou as máquinas, realizarem. Não é mais o intelecto humano, mas as máquinas — ou a física, a química, a biologia — que decidem o que é o homem, o que é a inteligência, o que é a verdade. Sob essas condições a mente humana depende mais e mais do “clima” gerado por suas próprias criações. O homem não sabe mais julgar como homem, em função, por assim dizer, de um absoluto que é a própria substância da inteligência. Ao perder-se num relativismo que não leva a parte alguma, ele se deixa ser julgado, determinado e classificado pelas contingências da ciência e da tecnologia; não é mais capaz de escapar da fatalidade vertiginosa que lhe impõem, e, relutando a admitir seu erro2 , só lhe resta o caminho de abdicar de sua dignidade humana e de sua liberdade. São a ciência e as máquinas, por sua vez, que criam o homem e, se tal expressão pode ser aventada, “criam também a Deus3 . Já que o vácuo deixado pela deposição de Deus não pode permanecer vazio, a realidade de Deus e sua marca na natureza humana requerem um usurpador da Divindade, um falso absoluto que possa encher o nada de uma inteligência roubada de sua substância. Atualmente há muita discussão a respeito de “humanismo”, discussão que ignora o fato de que, uma vez que o homem abandona suas prerrogativas à matéria, às máquinas, ao conhecimento quantitativo, cessa de ser verdadeiramente “humano”. O que é mais totalmente humano é o que fornece ao homem as melhores chances para o além de si mesmo e é também, pelo mesmo motivo, aquilo que corresponde mais profundamente à sua natureza.

Quando se fala sobre civilização, geralmente se atribui um sentido qualitativo ao termo, mas na verdade a civilização só representa um valor desde que seja supra-humana na origem e implique para o homem “civilizado” um senso do sagrado: só um povo que realmente possua esse senso e determine sua vida a partir dele é verdadeiramente civilizado. Se é objetado que essa reserva não leva em conta o significado total do termo, e que é possível conceber um mundo que é “civilizado” embora não tenha religião, a resposta é que nesse caso a “civilização” torna-se indiferente, ou melhor —já que não há escolha legítima entre o sagrado e outras coisas — que ela é a mais falaciosa das aberrações. Um sentimento do sagrado é fundamental para toda civilização porque é fundamental para o homem; o sagrado — o que é imutável, inviolável e, portanto, infinitamente majestoso — está na própria substância de nosso espírito e de nossa existência. O mundo está doente porque os homens vivem abaixo de si mesmos; o erro do homem moderno é querer reformar o mundo sem ter nem a vontade nem o poder para reformar o homem, e essa contradição flagrante, essa tentativa de criar um mundo melhor com base numa humanidade que se tornou pior, só pode terminar com a abolição até mesmo do que é humano, e, consequentemente, da própria felicidade. Reformar o homem significa ligá-lo novamente ao Céu, restabelecer o elo quebrado, significa arrancá-lo do reino das paixões, do culto à matéria, à quantidade e à astúcia, e reintegrá-lo no mundo do espírito e da serenidade — até mesmo, poderia se dizer — no mundo de sua própria razão suficiente.

Nessa ordem de ideias, e porque há assim chamados muçulmanos que não hesitam em descrever o Islã como “pré-civilização”, é preciso estabelecer uma distinção entre “queda”, “decadência”, “degeneração” e “desvio”. Toda a humanidade está decaída pela perda do Éden e também, mais particularmente, porque está envolvida na “idade de ferro”; algumas civilizações, como os mundos orientais mais tradicionais ao tempo da expansão ocidental, podem ser chamados “decadentes”4 ; muitas tribos selvagens são “degeneradas” de acordo com o grau de seu barbarismo; quanto à civilização moderna, ela “desviou-se”, e seu desvio é, mais e mais, combinado com uma decadência real, que é especialmente detectável na literatura e na arte. Se o Islã deve ser chamado “pré-civilização”, esta poderia ser muito bem ser chamada de “pós-civilização”.

Aqui surge uma questão, de certa forma à parte da tese geral deste livro, mas não menos ligada a ela, já que falar de Islã é necessariamente falar de tradição e, ao se tratar com tradição, deve se explicar aquilo que não o é. A questão é esta: qual o significado prático da exigência, tão frequente ultimamente, de que a religião deva ser orientada para problemas sociais? Isso significa tão simplesmente que a religião deva ser orientada para máquinas, ou, para dizê-lo sem rodeios, que a teologia deva tornar-se a criada da indústria. Não há dúvida de que sempre houve problemas sociais resultantes de abusos surgidos, de um lado, pela queda da humanidade, e, de outro, pela existência de coletividades muito grandes abrangendo grupos desiguais; mas na Idade Média (um período considerado longe do ideal pelos homens daquele tempo), e mesmo muito mais tarde, o artesão conseguia tirar alguma felicidade de seu trabalho, que ainda era humano, e do ambiente, ainda de acordo com um caráter étnico e espiritual. Qualquer que tenha sido a situação naquele tempo, hoje o trabalhador moderno existe e a verdade lhe diz respeito: ele deveria entender que, em primeiro lugar, não há a questão de reconhecer na condição totalmente fictícia de “operário” um caráter pertencente a uma categoria intrinsecamente humana, já que os homens que, de fato, são operários, podem pertencer a qualquer categoria natural. Em segundo lugar, deveria entender que toda situação exterior é somente relativa, o homem permanece sempre homem, e que a verdade e a vida espiritual podem se adaptar, graças a sua universalidade e caráter imperativo, a qualquer situação que seja, de forma que o assim denominado “problema do trabalhador industrial” é, no fundo, simplesmente o problema do homem colocado naquelas circunstâncias e, portanto, ainda um problema do homem como tal. Finalmente, deve compreender que a verdade não exige de nenhum homem que ele seja oprimido; quando uma situação como essa surge, gerada por forças que também só servem a máquinas, tampouco é admissível que o homem fundamente suas demandas na inveja, a qual não pode ser, em nenhum caso, a medida das necessidades humanas. É preciso acrescentar que se todos os homens obedecessem à profunda lei, gravada na condição humana, não haveria mais problemas sociais ou mesmo problemas humanos em geral. Deixando de lado a questão da possibilidade da humanidade ser reformada — e isso é de fato impossível -, cada um deveria reformar-se a si mesmo e nunca acreditar que realidades interiores não têm importância para o equilíbrio do mundo. É tão importante precaver-se de um otimismo quimérico como do desespero; o primeiro é contrário à realidade efêmera do mundo em que vivemos, e o segundo, à realidade eterna que trazemos em nós, a única a fazer nossa condição humana e terrena compreensível.

De acordo com um provérbio árabe que reflete a atitude muçulmana em relação à vida, a lentidão vem de Deus e a pressa, de Satã5 , e isso leva à seguinte reflexão: como as máquinas devoram o tempo, o homem moderno está sempre com pressa, e como essa perpétua falta de tempo gera nele reflexos de pressa e superficialidade, o homem moderno toma esses reflexos — que compensam formas de desequilíbrio correspondentes — por sinais de superioridade, e em seu coração despreza os homens do passado com seus hábitos “idílicos”, e especialmente o oriental “à moda antiga” com seu andar vagaroso e seu turbante, que demora tanto a ser enrolado. Sem tê-lo experimentado, as pessoas de hoje não podem imaginar o que compunha o conteúdo qualitativo do vagar tradicional e da maneira de “sonhar” dos homens dos tempos antigos. Contentam-se, ao invés, em caricaturar, que é mais simples e é frequentemente exigido por um ilusório instinto de auto-preservação. Se a perspectiva de hoje é tão completamente determinada por preocupações sociais com base evidentemente material, não é meramente pelas consequências sociais da mecanização e da condição humana que ela engendra, mas também pela ausência de qualquer atmosfera contemplativa, essencial para o bem-estar do homem, qualquer que seja seu “padrão de vida”, para usar uma expressão tão bárbara quanto comum. Qualquer atitude contemplativa hoje é denominada “escapismo” — em alemão, Weltflucht — e isso inclui toda recusa em situar a verdade total e o significado da vida na agitação externa. Um apego hipocritamente utilitário no mundo é dignificado como “responsabilidade” e as pessoas se apressam em ignorar o fato de que a fuga — mesmo supondo que ela aqui fosse tomada em sentido estrito — não é sempre a atitude errada.


NOTAS

1 “Nem a índia nem os pitagóricos praticaram a ciência atual, e isolar os elementos da técnica racional, que pertencem à sua ciência, de seus elementos metafísicos, é uma operação arbitrária e violenta contrária à real objetividade. Quando Platão é assim decantado, não lhe resta senão um interesse anedótico, na medida em que toda a sua doutrina pretende posicionar o homem na via supra-discursiva e supra-temporal do pensamento, da qual tanto a matemática como o mundo sensível podem ser símbolos. Portanto, se os povos puderam passar sem nossa ciência autônoma durante milênios, em todos os climas, é porque essa ciência não é necessária; e se ela apareceu, como um fenômeno da civilização, bruscamente e num só lugar, é para revelar sua essência contingente.” (Fernand Brunner, Science et Realité, Paris, 1954.)
2 Há aqui uma espécie de perversão do instinto de auto-preservação, uma necessidade de consolidar o erro, de forma a ter a consciência tranquila.
3 As especulações de Teilhard de Chardin fornecem um exemplo notável de uma teologia que sucumbiu aos microscópios e aos telescópios, às máquinas, e suas consequências filosóficas e sociais; “queda” que teria sido impensável se tivesse havido um mínimo conhecimento intelectivo direto das realidades imateriais. O lado “inumano” da doutrina em questão ê altamente revelador.
4 Não foi, entretanto, essa decadência que as tornou “colonizáveis”, mas, ao contrário, seu caráter normal, que excluía o “progresso técnico”. O Japão, que não tinha nada de decadente, não teve maior sucesso em resistir ao primeiro ataque das armas ocidentais que outros países. Apressamo-nos a acrescentar que, nos dias que correm, a antiga oposição entre Ocidente e Oriente não é válida, no plano político, em praticamente nenhum lugar, a não ser no interior das nações, apenas. Externamente, há somente variantes do espírito moderno que se opõem umas às outras.
5 Festína lente, dizia o provérbio latino.

Frithjof Schuon