Schuon (FSCI) – Islã – Moral

  • A questão da moral muçulmana
  • Da separação nítida, no Islã, entre o homem como tal e o homem coletivo, e no entanto há solidariedade
  • Porque o muçulmano não abandona, como o fazem o hindu e o budista, os ritos exteriores em função de tal método espiritual podendo os compensar?
  • Do caráter meritório da sexualidade no Islã
  • A persuasão desempenhou um papel bem maior que a guerra na expansão do Islã
  • Equilíbrio e união no Islã

Deve-se mencionar aqui a questão da moralidade muçulmana. Se quisermos entender certas contradições aparentes nessa moralidade precisamos levar em consideração o fato de que o Islã distingue o homem individual do homem coletivo, o último apresentando-se como uma criatura distinta, sujeita em certo grau, mas não além disso, à lei da seleção natural. Isso é dizer que o Islã põe tudo em seu devido lugar e trata de tudo de acordo com sua própria natureza. O Islã concebe o homem coletivo não através da perspectiva distorciva de um idealismo místico que é de fato inaplicável, mas levando em consideração as leis naturais que regulam cada ordem, e que são, dentro dos limites de cada ordem, desejadas por Deus. O Islã é a perspectiva da certeza e da natureza das coisas, mais do que de milagres e da improvisação idealista. Isto é dito não com qualquer intenção subjacente de criticar indiretamente o Cristianismo, pois este é aquilo que deve ser, mas a fim de melhor esclarecer a intenção e a justificação da perspectiva islâmica.

Se começarmos pela ideia de que o esoterismo, por definição, considera antes de tudo o ser das coisas e não o devir ou nossa situação em relação a nossa vontade, então, para o gnóstico cristão, é Cristo que é o ser das coisas, este Verbo de que se diz que “Tudo foi feito por meio d’Ele e sem Ele nada foi feito”. A paz de Cristo é, desse ponto de vista, o repouso do Intelecto “naquilo que é”.

Ainda que haja uma nítida diferença entre o homem como tal1 e o homem coletivo, essas duas realidades são, contudo, profundamente interligadas, dado que a coletividade é um aspecto do homem — nenhum homem pode nascer sem uma família — e que, reciprocamente, a sociedade é um conjunto de indivíduos. Conclui-se dessa interdependência ou reciprocidade que tudo que é feito tendo em vista a coletividade, como o dízimo para os pobres ou a guerra santa, tem um valor espiritual para o indivíduo, sendo o inverso também verdadeiro. Essa relação recíproca é mais exata porque o indivíduo vem antes da coletividade, sendo todos os homens descendentes de Adão, e não Adão, dos homens.

O que acabou de ser dito explica por que o muçulmano, diferentemente do budista e do hindu, não abandona os ritos exteriores ao seguir um método espiritual particular que possa valer por eles, ou porque tenha alcançado um nível espiritual que permita tal abandono2 . Um determinado santo pode não necessitar mais das preces canônicas, ao se achar num estado de saturação em oração, num estado de “intoxicação”3 . Apesar disso, continua a efetuar as preces a fim de orar com e por todos, e a fim de que todos possam orar nele. Ele é a encarnação daquele “Corpo místico” que toda comunidade crente constitui, ou, de outro ponto de vista, encarna a Lei, a tradição e a oração como tais. Na medida em que ele é um ser social deve rezar, devido a seu exemplo, e na medida em que é um indivíduo, a fim de permitir que o que é humano seja realizado e, em certo sentido, renovado através dele.

A transparência metafísica das coisas e a contemplatividade correspondente expressam que a sexualidade (dentro da estrutura de sua legitimidade tradicional, que é de equilíbrio social e psicológico) pode admitir um caráter louvável, como a própria existência dessa estrutura já demonstra. Em outras palavras, não é só o prazer que conta — deixando de lado a preocupação de preservação da espécie — porque a sexualidade tem também seu conteúdo qualitativo, seu simbolismo, que é tanto objetivo como algo vivido. A base da moralidade muçulmana é sempre a realidade biológica, e não um idealismo contrário às possibilidades coletivas e aos direitos inegáveis da lei natural; mas essa realidade, ainda que forme a base de nossa vida animal e coletiva, não é absoluta, por sermos seres semi-celestiais; pode ser sempre neutralizada a nível de nossa liberdade pessoal, embora nunca abolida de nossa existência social4 . O que acaba de ser dito sobre a sexualidade se aplica também por analogia, mas apenas em relação ao mérito, à comida. Como em todas as religiões, comer exageradamente é um pecado para o Islã, mas comer na medida devida e com gratidão a Deus não só não é pecado como é uma ação seguramente elogiável. A analogia não é total, entretanto, já que num hadith famoso o Profeta disse que “amava as mulheres” e não que amava a “comida”. O amor à mulher, aqui, está ligado à nobreza e à generosidade, além de seu simbolismo puramente contemplativo, que ultrapassa isso.

O Islã é frequentemente censurado por ter propagado sua fé pela espada. O que não é observado é que, em primeiro lugar, a persuasão teve um papel muito maior que a guerra na expansão do Islã como um todo; em segundo lugar, que só os politeístas e idolatras poderiam ser coagidos a abraçar a nova religião5 ; em terceiro lugar, que o Deus do Antigo Testamento não é menos guerreiro que o do Corão, muito pelo contrário; e, finalmente, que o Cristianismo também utilizou a espada a partir da entrada em cena de Constantino. A questão a ser colocada aqui é simplesmente a seguinte: é possível usar de força com o objetivo de afirmar e difundir uma verdade vital? Não há dúvida de que a resposta deve ser afirmativa, já que a experiência mostra que algumas vezes precisamos usar de violência com pessoas irresponsáveis, em seu próprio interesse. Ora, como essa possibilidade existe, não pode deixar de se manifestar em condições apropriadas6 , exatamente como a possibilidade contrária, de vitória através da força inerente à própria verdade. É a natureza interna ou externa das coisas que determina a escolha entre as duas alternativas. Por um lado, o fim santifica os meios e, por outro, os meios podem profanar o fim, o que significa que os meios devem se achar prefigurados na natureza divina. Desse modo, o direito do mais forte está prefigurado na “selva” à qual sem dúvida pertencemos até certo ponto, e quando vistos enquanto coletividades; mas nessa selva não pode ser encontrado nenhum direito à perfídia e à vilania, e mesmo que essas características fossem af encontradas, nossa dignidade humana nos vedaria qualquer participação nelas. A severidade de algumas leis biológicas não deve nunca ser confundida com a infâmia de que só o homem é capaz através de seu teomorfismo pervertido.7

De um certo ponto de vista, pode-se dizer que o Islã tem duas dimensões: a dimensão “horizontal” da vontade e a dimensão “vertical” da inteligência. Podemos denominar a primeira de “equilíbrio”8 e a segunda, de união. O Islã é em essência equilíbrio e união: ele não sublima primariamente a vontade pelo sacrifício, mas a neutraliza pela Lei, enquanto ao mesmo tempo dá ênfase à contemplação. As dimensões de equilíbrio e união, a horizontal e a vertical, dizem respeito tanto ao homem como tal, quanto à comunidade; não há aqui identidade, seguramente, mas uma solidariedade que faz a sociedade participar, à sua maneira e de acordo com suas possibilidades, no percurso do indivíduo para a União, e a recíproca também é verdadeira. Um dos modos mais importantes de realizar o equilíbrio é precisamente um ajuste entre a Lei sagrada, referente ao homem como tal, e a lei referente à sociedade. Empiricamente o Cristianismo também alcançou essa posição, por força das circunstâncias, mas permitiu que certas “fissuras” permanecessem, e não acentuou em primeiro lugar nem a divergência dos dois planos humanos nem, consequentemente, a necessidade de harmonizá-los. Não é demais repetir que o Islã é um equilíbrio determinado pelo Absoluto e disposto tendo em vista o Absoluto. Esse equilíbrio, bem como o ritmo, que no Islã é realizado ritualmente, através das preces canônicas seguindo o avanço do sol, e “mitologicamente”, através da série retrospectiva de “mensageiros” divinos e de “Livros” revelados, é a participação de muitos no Um e do condicionado no Incondicionado. Sem equilíbrio, com base nessa perspectiva, não encontraremos o centro, e fora do centro nenhuma ascensão ou união é possível. Enquanto o equilíbrio se refere ao “centro”, o ritmo está mais particularmente relacionado à “origem”, concebida como a raiz qualitativa das coisas.


NOTAS

1 A expressão “homem individual” não é usada aqui porque teria a desvantagem de definir o homem em termos da coletividade e não a partir de Deus. A distinção feita não é entre um homem e vários homens, mas entre a pessoa humana e a sociedade.
2 O princípio desse abandono dos ritos comuns é contudo conhecido e algumas vezes se manifestou, ou então Ibn Hanbal não teria censurado os sufis por desenvolverem a meditação em detrimento das orações, com pretensões de se libertarem das obrigações da lei. De fato, é feita uma distinção entre dervixes “viajantes” (em direção a Deus, salikun) e os que são “atraídos” (por Deus, majadhib). Os da primeira categoria formam a grande maioria e obedecem à Lei, enquanto os da segunda prescindem mais ou menos dela, não sendo muito importunados por isso, porque geralmente são tidos por loucos e, portanto, dignos de pena, de medo ou mesmo de veneração. Entre os sufis da Indonésia parece que não são raros os casos de abandono dos ritos em favor apenas da prece do coração; a consciência da Unidade Divina é considerada uma prece universal que possibilita a dispensa das preces canônicas; o conhecimento supremo é tido por excluir a multiplicidade “politeísta” (mushrik) dos ritos, já que o Absoluto não admite dualidade. No Islã em geral parece ter sempre havido — bem à parte da distinção especial entre salikun e majadhib — uma divisão exterior entre os sufis “nomistas” e “anomistas”, sendo aqueles dedicados à Lei em virtude de seu simbolismo e conveniência, e estes desprendidos dela em virtude da supremacia do coração (qalb) e do conhecimento direto (ma’rifah). Jalal ad-Din Rumi diz em seu Mathnawi: “Aqueles que amam os ritos formam um grupo e aqueles cujo coração está inflamado de amor formam outro”, uma observação dirigida aos sufis, somente, como se vê por sua referência à “essência da certeza” (‘ayn al-yaqin) e evidentemente não inclui nenhuma sugestão de uma alternativa sistemática, como a própria vida de Jalal ad-Din comprova; daí não se pode tirar apoio para nenhum “livre-pensar”. Finalmente poderia ser observado que, segundo Al-Junayd, “aquele que efetua a união” (muwahhid) deve observar “sobriedade” (sahw) e evitar a “intoxicação” (sukr) assim como a “libertinagem” (ibahiyah).
3 O Corão diz: “Não se dirijam às preces em estado de embriaguez”, e isso pode ser entendido num sentido mais elevado; o sufi que experimenta uma “estação” (maqam) de bênção, ou mesmo somente o dhakir (o homem abandonado à dhikr, o equivalente islâmico do japa hindu) pode, considerando sua prece secreta um “vinho” (khamr), em princípio, abster-se das preces comuns; “em princípio” porque, na verdade, a preocupação com o equilíbrio e a solidariedade, tão notável no Islã, faz com que a balança tenda para a outra direção.
4 Muitos santos hindus não fizeram caso do sistema de castas, mas nenhum pensou em aboli-lo. Quanto à questão de haver duas moralidades, um para os indivíduos e outra para o Estado, nossa resposta ê afirmativa, sujeita à reserva de que uma pode sempre se estender para o domínio da outra, de acordo com as circunstâncias internas ou externas. Nunca, em nenhuma circunstância, é permitido à intenção “não resistir ao mal” e tornar-se cumplicidade, traição ou suicídio.
5 Essa atitude cessou em relação aos hindus, quase totalmente, assim que os muçulmanos perceberam que o hinduísmo não era equivalente ao paganismo dos árabes; os hindus foram nesse caso assimilados ao “povo do Livro” (ahl al-kitab), ou seja, aos monoteístas das tradições semitas ocidentais.
6 Ao usar de violência contra os vendedores no templo, Cristo mostrou que essa atitude não poderia ser excluída.
7 “Vemos príncipes muçulmanos e católicos não sem aliança quando se trata de quebrar o poder de um correligionário perigoso, como também ajudando-se mutuamente a vencer desordens e revoltas, Não ê totalmente sem censura que o leitor descobre que numa das batalhas pelo califado de Córdoba, em 1010 AD, foram forças catalãs que salvaram a situação, e que nesse campo três bispos deram suas vidas pelo “Príncipe dos Crentes”. . . Al-Mansur tinha vários condes consigo, os quais haviam se unido a ele com suas tropas, e não havia nada de excepcional na presença de guardas cristãos na corte de Andaluzia. . . Quando um território inimigo era conquistado, as convicções religiosas da população eram respeitadas tanto quanto possível; pode-se lembrar que Al-Mansur — em geral um homem de poucos escrúpulos — tomou diligências, no assalto a Santiago, para proteger de qualquer profanação a igreja que continha a tumba do Apóstolo, e que em muitos outros casos os califas aproveitaram a oportunidade de mostrar seu respeito pelos objetos sagrados dos inimigos: em circunstâncias similares os cristãos adotaram atitude semelhante. O Islã foi respeitado durante séculos nos países reconquistados, e foi só no século XVI que. . . passou a ser sistematicamente perseguido e exterminado sob instigação de um clero fanático que se tornara super-poderoso. Durante toda a Idade Média, ao contrário, a tolerância com as convicções alheias e o respeito pelos sentimentos do inimigo acompanharam a luta incessante entre mouros e cristãos, e reduziram grandemente os rigores e misérias da guerra, dando às batalhas uma característica tão cavalheiresca quanto possível. . . Apesar do abismo linguístico, o respeito pelo adversário, assim como a alta estima por suas virtudes, e, na poesia dos dois lados, a compreensão por seus sentimentos, tornaram-se um vínculo nacional comum; essa poesia testemunha eloquentemente o amor ou amizade que unia frequentemente muçulmanos e cristãos, apesar de todos os obstáculos.” (Ernst Kuhnel, Maurische Kunst, Berlim, 1924.)
8 Desequilíbrio comporta também um significado positivo, mas só indiretamente; toda guerra santa ê um desequilíbrio. Algumas palavras de Cristo podem ser interpretadas como a instituição de um desequilíbrio tendo em vista a união: “Não vim para vos trazer a paz”; só Deus irá portanto restaurar o equilíbrio.

Frithjof Schuon