A afirmação filosófica mais fundamental feita pelo Zen desde o início é que existe uma relação funcional entre o sujeito e o objeto, o conhecedor e o conhecido. O Zen começa reconhecendo uma correlação muito próxima entre o estado de consciência do sujeito e o estado do mundo objetivo que o sujeito percebe. Essa correlação entre sujeito e objeto é de natureza extremamente sutil, delicada e dinâmica, tanto que o menor movimento por parte do sujeito necessariamente induz uma mudança por parte do objeto, por menor que seja.
A observação desse ponto, por mais trivial que possa parecer à primeira vista, é, na realidade, de suma importância para uma compreensão correta do Zen Budismo, seja prático ou filosófico. Pois tanto a prática do Zen em sua totalidade quanto sua elaboração filosófica dependem dessa relação entre sujeito e objeto. Não é menos importante observar que, nessa correlação entre o sujeito e o objeto, ou o ego e o mundo, o Zen — e, por falar nisso, o budismo em geral — sempre reconhece que o primeiro, ou seja, o sujeito ou o ego, é o fator determinante. O estado particular em que o sujeito que percebe se encontra determina o estado ou a natureza do objeto que é percebido. Um modo existencial específico do sujeito atualiza o mundo inteiro em uma forma específica correspondente a ele. O mundo fenomenal surge diante dos olhos de um observador de acordo com o modo interno de ser desse observador. Em resumo, a estrutura do sujeito determina a estrutura do mundo das coisas objetivas.
Consequentemente, se sentirmos, vaga ou definitivamente, que o mundo como o observamos não é o mundo real, que as coisas fenomenais que vemos não estão sendo vistas em sua verdadeira realidade, então teremos apenas que fazer algo sobre a própria estrutura de nossa consciência. E é exatamente isso que o Zen Budismo propõe que façamos.
Diz-se que um famoso mestre zen da dinastia T’ang, Nan Ch’uan, comentou, apontando com o dedo para uma flor que desabrochava no pátio: “As pessoas comuns veem essa flor como se estivessem em um sonho”. Se a flor que realmente vemos no jardim for comparada a uma flor vista em um sonho, basta acordarmos do sonho para vermos a flor como ela realmente é. E isso significa simplesmente que é necessária uma transformação pessoal total por parte do sujeito, se ele quiser ver a realidade das coisas. Mas que tipo de transformação? E qual será a realidade das coisas vista por nós após essa transformação?
O que o próprio Nan Ch’uan quer transmitir com sua afirmação é bastante claro. Ele quer dizer que uma flor, como vista pelas pessoas comuns em condições normais, é um objeto que está diante do sujeito que a percebe. É exatamente isso que Nan Ch’uan indica com sua expressão: “uma flor vista em um sonho”. Aqui, a flor é representada como algo diferente do homem que está olhando para ela. A flor em sua verdadeira realidade, entretanto, é, de acordo com Nan Ch’uan, uma flor que não se distingue, que não é distinguível, do homem que a vê, o sujeito. O que está em questão aqui é um estado que não é nem subjetivo nem objetivo, mas que é, ao mesmo tempo, subjetivo e objetivo — um estado no qual o sujeito e o objeto, o homem e a flor, se fundem de uma maneira indescritivelmente sutil em uma unidade absoluta.
No entanto, para darmos um passo adiante no cerne do problema que estamos tratando neste capítulo, precisamos recolocar as palavras de Nan Ch’uan em seu contexto original. Elas se encontram em um célebre livro-texto de budismo zen, Pi Yen Lu. Diz o seguinte
Certa vez, o alto funcionário Lu Keng estava conversando com Nan Ch’uan, quando Lu comentou: “Seng Chao disse uma vez: “O céu e a terra (ou seja, todo o universo) têm a mesma raiz que o meu próprio eu, e todas as coisas são uma só comigo.” Isso eu acho muito difícil de entender. Em seguida, Nan Ch’uan, apontando com o dedo para uma flor que desabrochava no pátio e chamando a atenção de Lu para ela, comentou: “As pessoas comuns veem essa flor como se estivessem em um sonho!”
Todo o contexto esclarece a intenção de Nan Ch’uan. É como se ele dissesse: “Olhe para aquela flor desabrochando no pátio. A flor em si está expressando com sua própria existência o fato de que todas as coisas são completamente unas com nosso próprio eu na unidade fundamental da Realidade Suprema. A Verdade está ali nua, totalmente aparente. Ela está, a todo momento e em cada coisa, se revelando de forma tão clara e direta. No entanto, infelizmente, as pessoas comuns não possuem o olho para ver a Realidade nua e crua. Elas veem todas as coisas apenas através de véus”.
Como, dessa forma, as pessoas comuns veem tudo através dos véus de seu próprio ego relativo e determinado, tudo o que veem é visto de forma onírica. Mas elas próprias estão firmemente convencidas de que a flor, tal como a veem como um “objeto” no mundo externo, é a realidade. Para poderem dizer que essa visão da flor está tão distante da realidade nua e crua que é quase um sonho, eles precisam transformar seu ego empírico em outra coisa. Só então poderão afirmar com total confiança, como o monge Chao, que “o objeto não é outro senão o próprio sujeito” e que “o objeto e o sujeito se fundem de forma indescritivelmente sutil e delicada em um só e, por fim, são reduzidos à base original do Nada”.