O que mata a Vida não morre. O que traz à Vida tudo o que vive não vive. [Chuang-Tzu]
Os estágios do desenvolvimento espiritual acima descrito de “assentar-se em olvido” são discutidos de várias maneiras por Chuang-tzu em vários lugares de seu livro. Às vezes ele faz um curso ascendente, e às vezes um curso descendente. O primeiro corresponde ao processo real pelo qual a mente de um homem avança gradualmente em direção à perfeição espiritual. Um exemplo típico deste tipo de descrição é encontrado em uma passagem que afirma reproduzir uma conversa entre um certo Nan Po Tzu K’uei e um Homem (ou Mulher) Perfeito chamado Nu Yu. Nesta passagem, Chuang-tzu dá uma descrição das etapas que são percorridas por um homem que nasce com uma potencialidade especial para ser um Homem Perfeito até chegar realmente ao último estágio. A descrição é muito interessante quando considerada como uma contrapartida taoísta da fana islâmica ou auto-aniquilação.
A conversa começa com o espanto de Nan Po Tzu K’uei com a tez do velho Nu Yu, que, como ele observa, é como a de uma criança.
Nan Po Tzu K’uei: Você é velho em anos, Mestre, e ainda assim sua aparência é como a de uma criança. Por quê?
Nu Yu: (Isso é porque) eu vim a conhecer o Caminho [Tao].
Nan Po: É possível para mim aprender o Caminho?
Nu Yu: Não. Como isso pode ser possível? Você não é o tipo certo de homem para fazer isso.
Você conhece Pu Liang I. Ele tinha (desde o início) a potencialidade natural para ser um ‘homem sagrado’, mas ele ainda não havia adquirido o Caminho, enquanto eu tinha o Caminho, mas não tinha a ‘potencialidade’. Eu queria dar-lhe orientação para ver se, por acaso, ele poderia se tornar um ‘homem sagrado’. Mesmo que eu não conseguisse atingir meu objetivo, era (pensei) fácil para um homem em posse do Caminho comunicá-lo a um homem em posse da potencialidade de um “homem sagrado”.
Assim eu persistentemente o ensinei. Depois de três dias, ele aprendeu a colocar o mundo fora da mente.
O ‘colocar o mundo fora da Mente’, isto é, esquecer a existência do mundo, marca o primeiro estágio. O ‘mundo’ sendo algo objetivo – e, portanto, relativamente distante da Mente – é a coisa mais fácil para o homem apagar de sua conscientidade [consciousness].
Depois que ele colocou o mundo fora dele mesmo, continuei persistentemente a instruí-lo. E em sete dias ele aprendeu a colocar as coisas fora de sua Mente.
O ‘colocar as coisas fora da Mente’ representa o segundo estágio. Esquecer a existência do mundo não foi tão difícil, mas as ‘coisas’ mais intimamente relacionadas com o homem resistem a serem apagadas da consciência. Como Kuo Hsiang observa: “As coisas são necessárias na vida diária. Então elas estão extremamente próximos do ego. É por isso que elas são tão difíceis de colocar fora da Mente’. E Ch’eng Hsuan Ying: ‘Os estados do mundo inteiro são estranhos e distantes de nós; por isto é fácil para nós esquecê-los. As coisas e utensílios que realmente nos servem em nossa vida cotidiana nos são familiares; por isto é difícil para nós esquecê-los’.
Ao esquecer as coisas familiares que nos cercam e estão conectadas conosco de várias maneiras na vida cotidiana, o mundo externo desaparece completamente de nossa consciência.
Depois que ele colocou as coisas fora da mente, eu ainda continuei a instruí-lo. E em nove dias ele aprendeu como colocar a Vida fora da Mente.
Esta é a terceira etapa. Consiste em o homem esquecer a Vida, isto é, apagar de sua consciência o fato de sua própria Vida, ou seja, sua própria existência pessoal. Este é o estágio de abandonar o “ego”. Como resultado, o mundo, tanto em seus aspectos externos como internos, desaparece da conscientidade. Este estágio é imediatamente seguido pelo próximo, que é a chegada repentina do alvorecer da “iluminação”.
Depois que ele colocou a Vida fora de sua Mente, (seu olho interior foi aberto assim que) a primeira luz da aurora irrompe (a escuridão da noite).
Uma vez que esta “iluminação” é alcançada, não há mais etapas por vir. Ou deveríamos dizer, há etapas por vir, mas elas não vêm sucessivamente; todos elas se atualizam simultaneamente. Se elas devem ser considerados “estágios”, elas devem ser descritas como estágios horizontais que ocorrem de uma só vez e todas juntas no momento em que o olho interior é aberto pelo raio penetrante da aurora espiritual. O primeiro desses estágios é “perceber a Unidade absoluta”.
No momento em que o dia amanheceu, ele viu a Unidade.
Este é o momento em que todas as coisas e ‘eu’ se tornam absolutamente um. Não há mais oposição de sujeito e objeto – o sujeito que ‘vê’ e o objeto ‘visto’ sendo completamente unificados – nem há distinção entre ‘isto’ e ‘aquilo’, ‘existência’ e ‘não-existência’. ‘Eu’ e o mundo são trazidos de volta à sua unidade original absoluta.
E depois de ter visto a Unidade, não havia (em sua consciência) nem passado nem presente.
No estágio da Unidade absoluta, não há mais conscientidade da distinção entre “passado” e “presente”. Não há mais conscientidade do “tempo”. Podemos descrever esta situação de uma maneira diferente, dizendo que o homem está agora no Eterno Agora. E como não há mais conscientidade do “tempo” sempre fluindo, o homem está no estado de “sem morte e sem vida”.
Depois de ter anulado o passado e o presente, ele foi capaz de entrar no estado de ‘sem morte e sem vida’.
O estado de ‘sem morte e sem vida’ não pode ser nada além do estado do próprio Absoluto. O homem neste estágio está situado bem no meio do Caminho, sendo identificado e unificado com ele. Ele está além da Vida e da Morte, porque o Caminho com o qual ele é um está além da Vida e da Morte.
O estado do Caminho ou do Absoluto, entretanto, não é simplesmente estar além da Vida e da Morte. Como é claramente demonstrado pelo próprio processo epistemológico pelo qual o homem finalmente o alcança, este estado não é puro “nada” no sentido puramente negativo. É antes o estado metafísico último, a Unidade absoluta, ao qual a dispersão da Multiplicidade ontológica é trazida de volta. É uma Unidade formada pela unificação de “dez mil coisas”, uma Unidade na qual todas as coisas são existentes, reduzidas ao estado de Nada.
Não há ‘nenhuma morte e nenhuma vida’ aqui. Ou seja, é um estado de completa tranquilidade e quietude. Não há mais vestígios do barulho e da agitação do mundo da existência sensível. E, no entanto, a quietude não é a quietude da morte. Não há mais movimento observável. Mas não é um estado de não movimento em um sentido puramente negativo. É antes um não-movimento dinâmico, cheio de tensões ontológicas internas, e que esconde em si infinitas possibilidades de movimento e ação.
Assim é, em ambos os aspectos mencionados, uma coincidentia oppositorum. O Absoluto, nesta visão, é Algo que vai realizando e atualizando ‘dez mil coisas’ em suas miríades de formas e transformando-as em um processo ilimitado de Transmutação, e ainda ao mesmo tempo mantendo todas essas coisas em sua forma supratemporal e Unidade supra-espacial. É uma Unidade que é ela mesma uma Multiplicidade. É a quietude que é ela mesma a ebulição.
No final da passagem Chuang-tzu refere-se a este aspecto do Caminho nas seguintes palavras.
O que mata a Vida não morre. O que traz à Vida tudo o que vive não vive. Por sua própria natureza, tudo envia e tudo acolhe. Não há nada que não destrua. Não há nada que não aperfeiçoe. É, neste aspecto, chamado Comoção-Tranquilidade. O nome Comoção-Tranquilidade refere-se ao fato de que (isto é, o Caminho) coloca (todas as coisas) em turbulência e agitação e depois as conduz à Tranquilidade.
Devemos ter em mente que neste estágio mais elevado da espiritualidade, o homem está completamente unificado e identificado com o Caminho. Como, no entanto, o Caminho nada mais é do que comoção-tranquilidade, o homem que está em completa união com o Caminho passa por esse processo cósmico da Unidade absoluta se diversificando em turbulência e agitação em ‘dez mil coisas’, e as últimas voltando novamente ao estado original de Tranquilidade. A ontologia do Taoísmo é uma ontologia que se baseia em tal experiência. Seria natural para nós imaginar que a visão do Ser aos olhos espirituais de um sábio taoísta seria de natureza e estrutura essencialmente diferentes daquelas de um Aristóteles, por exemplo, que funda seu edifício filosófico na experiência ontológica ordinária de um homem comum olhando para o mundo ao seu redor no nível do bom senso e sólido. O ponto de vista mais natural dos filósofos deste último tipo é o essencialismo. Na China antiga, o ponto de vista essencialista é representado por Confúcio e sua escola. Tanto Lao-tzu quanto Chuang-tzu tomam uma posição determinada contra ela.