Izutsu (ST:332-333) – O nascimento de um novo ego

Vimos no que precede como é fútil e absurdo, na visão de Chuang-tzu, o padrão comum de pensamento tipificado pelo tipo de discussão isto-é-‘certo’-e-aquilo-é-‘errado’. Qual é a fonte de todas essas verbalizações fúteis? Chuang-tzu acha que ela se encontra na convicção errônea do homem sobre si mesmo, ou seja, que ele próprio tem (ou é) um “ego”, uma entidade auto-subsistente dotada de absoluta independência ontológica. O homem tende a se esquecer de que o “ego” que ele acredita ser tão independente e absoluto é, na realidade, algo essencialmente relativo e dependente. Relativo a quê? Relativo a “ti”, a “eles” e a todas as outras coisas que existem ao seu redor. Dependente de quê? Dependente de Algo absolutamente superior a si mesmo, Algo que Chuang-tzu chama de Criador, ou mais literalmente, o Criador das coisas. Chuang-tzu descreve essa situação por meio da parábola “Sombra e Penumbra”.

Certa vez, Penumbra disse a Sombra: “Às vezes percebo que estás andando, mas no momento seguinte estás parado. Às vezes, percebo que estás sentado, mas no momento seguinte estás de pé. Por que és tão inconstante e instável?

Shadow respondeu: Parece-me que (ao agir assim) estou simplesmente dependendo de algo (ou seja, do corpo). Mas aquilo de que dependo parece estar agindo como se dependesse de outra coisa (ou seja, o Criador). Assim, todas as minhas atividades em sua dependência parecem ser iguais aos movimentos das escamas de uma cobra ou das asas de uma cigarra.

Como posso saber, então, por que ajo dessa forma e por que não ajo daquela?

Chuang-tzu priva o “ego” de um só golpe de sua aparente auto-subsistência e autossuficiência. Mas essa visão vai naturalmente contra a crença e a convicção cotidianas do homem sobre si mesmo. Pois, de acordo com a visão cotidiana das coisas, o “ego” é a própria base e o núcleo da existência do homem, sem o qual ele perderia sua personalidade, sua unidade pessoal e não seria nada. O ‘ego’ é o ponto de coordenação, o ponto de síntese, no qual todos os elementos díspares de sua personalidade, sejam eles físicos ou mentais, se unem. O “ego” assim entendido é chamado por Chuang-tzu de “mente”.

Acho apropriado introduzir neste ponto um par de termos-chave que parecem ter desempenhado um papel decisivo na formação das principais linhas de pensamento de Chuang-tzu com relação à natureza da mente: tso ch’ih lit. “assentar-galopar” e tso wang lit. “assentar-esquecer”.

O primeiro deles, tso ch’ih, refere-se à situação em que a mente de uma pessoa comum se encontra, em constante movimento, indo para um lado neste momento e para outro no momento seguinte, em resposta a uma miríade de impressões vindas de fora para atrair sua atenção e despertar sua curiosidade, sem nunca cessar, para parar e descansar por um momento, mesmo quando o corpo está calmamente sentado. O corpo pode estar parado, mas a mente está correndo. É a mente humana em tal estado que a palavra hsin (mente) designa nesse contexto. É exatamente o oposto da mente em um estado de concentração calma e pacífica.

É fácil entender conceitualmente essa oposição dos dois estados da mente, um “galopando por aí” e o outro “assentado, quieto e vazio”. Mas é extremamente difícil para os homens comuns se libertarem de fato do domínio do primeiro e perceberem em si mesmos o segundo. Mas, na verdade, ensina Chuang-tzu, o próprio homem é responsável por permitir que a Mente exerça tal domínio tirânico sobre ele, pois a tirania da Mente nada mais é do que a tirania do “ego” — aquele falso “ego” que, como vimos acima, ele cria para si mesmo como o centro ontológico de sua personalidade. Chuang-tzu usa uma expressão característica para essa situação básica do homem: shih hsin ou “fazer da Mente seu próprio mestre”.

O “ego”, assim entendido, é a própria criação do homem. Mas o homem se apega a ele, como se fosse algo objetivo, até mesmo absoluto. Ele nunca pode se imaginar existindo sem ele e, portanto, não pode abandoná-lo nem por um momento; assim, ele faz de sua Mente seu venerado “mestre”.

Essa Mente, em um nível mais intelectual, aparece como Razão, a faculdade do pensamento discursivo e do raciocínio. Às vezes, Chuang-tzu chama isso ch’eng hsin ou “mente acabada”. A “mente acabada” significa a mente que assumiu uma forma definitivamente fixa, a mente em um estado de coagulação, por assim dizer. É a Razão por cuja orientação — aqui novamente nos deparamos com a expressão: “fazer da Mente o mestre” — o homem discrimina as coisas e faz julgamentos sobre elas, dizendo “isto é certo” e “aquilo é errado”, etc., e continua caindo cada vez mais fundo no pântano ilimitado dos absurdos.

Todo mundo segue sua própria “mente acabada” e a venera como seu próprio mestre. A esse respeito, podemos dizer que ninguém carece de um mestre. Aqueles que conhecem a realidade dos fenômenos que mudam incessantemente e aceitam (essa lei cósmica da Transmutação) como seu padrão (de julgamento) não são as únicas pessoas que têm seus mestres. (No sentido acima mencionado) até mesmo um idiota tem seu próprio mestre. É impossível para um homem insistir na distinção entre “certo” e “errado” sem ter uma “mente acabada”. Isso é tão impossível quanto um homem partir (de um país do norte) hoje e chegar ao país de Yueh (no limite sul da China) ontem!

Assim, vemos que todos os pseudo-problemas relativos ao “certo” e ao “errado” ou ao “bom” e ao “ruim”, cuja natureza real foi revelada no capítulo anterior, surgem do fato de o homem exercer sua própria “mente acabada”. A mente, de acordo com Chuang-tzu, é a fonte e a origem de todas as loucuras humanas.

Toshihiko Izutsu (1914-1993)