Há dois modos de efetivação do ato de ser, que Avicena já havia reconhecido: o primeiro é a efetividade in concreto, o segundo é a afirmação do ser na existência mental, na realidade dos objetos do pensamento. A existência mental das representações não é menos um ato de ser do que o ato concreto de ser, mesmo que o último supere o primeiro em intensidade e dignidade. A distinção entre eles não é de ser e não-ser, mas de grau. Para ser pensado, um pensamento deve possuir um ato de ser na mente, e isso é análogo à existência de um objeto sensível ou de uma realidade suprassensível concreta (um corpo, uma alma, uma Inteligência).
Tudo o que é real possui sua realidade efetiva por seu mero ato de existir. Tudo o que ocupa o domínio da quididade é descartado do fundamento do que existe. Certamente, não há nada que não possua uma quididade, se não Deus; não há nada que não desdobre seu ato de ser em uma essência cujo conteúdo formal é definido pela e na quididade. Estejamos certos de que se alguém professa, para o existente derivado de Deus, a unidade inevitável do ato de ser e da quididade, esse alguém é Sadra. Se alguém sustenta que, na realidade concreta ou na realidade do pensamento, é indispensável que o ato de ser atualize uma quididade, esse alguém é Sadra. Mas tal unidade não é uma união, ela não une duas realidades que possuiriam, uma separada da outra, uma existência. O ato de ser não possui existência, pois ele é existência. Ele não recebe uma segunda existência, que seria como um acidente para ele, e que por sua vez teria uma existência, e assim por diante ad infinitum1. O ato de existir é a presença luminosa imediata da própria coisa, sua pura imanência. A quididade não tem outro ser além daquele que lhe é conferido pelo ato de existir. Isso explica por que ela é a sombra do ato de ser. A quididade de um existente é a parte da escuridão que sanciona o limite de seu ato de ser.
Daí uma primeira crítica, que Sadra repete à vontade, e que é dirigida a Sohravardi, como a todos aqueles que professaram uma filosofia da primazia da quididade sobre o puro ato de existir. Eles transformaram o ato de ser em uma realidade abstrata, esquecendo-se de que ele é o próprio ato de constituir a realidade. Eles partem de um existente concreto e abstraem o ser desse existente de modo a torná-lo um simples ponto de vista tirado da coisa. “Abstração” é a expressão árabe amr i’tibâri, uma “realidade de um simples ponto de vista”. Tomar um ponto de vista, colocar-se em uma perspectiva, é esquecer a totalidade do que se trata, em si mesmo e por si mesmo, e escolher um aspecto do que existe para o todo do que existe. Sohravardi sustenta que a existência do existente é apenas um ponto de vista adotado sobre esse existente. Ipso facto, ele toma como real um aspecto inessencial, a definição formal do existente, a quididade, a própria coisa que, desde Aristóteles, constituía a ousia da coisa em vista!
A quididade é sempre uma abstração que deixa de fora o aspecto concreto da coisa, quer ela seja realmente existente nas fileiras da Natureza, Alma e Inteligência, quer seja uma “coisa mental” na mente humana. Na linguagem de Sadra, uma “abstração” é sempre oposta a uma coisa real e efetiva, amr haqiqi. O i’tibâr, o “ponto de vista” quiditativo, opõe-se a haqq, ao real, como o limite ao ilimitado, como as determinações finitas ao indeterminado da liberdade infinita da refulgência divina. Sadra rejeita a tese de que o ato de ser é uma realidade comum, que é identificável com algum ser comum, ens communis. Embora o ato de ser possa ser dito, de forma análoga, de todos os seres existentes, ele não é comum a eles, da mesma forma que é abstraído, pela força da linguagem, quando falamos do ser em geral. Nunca será um atributo comum ao ser. O ato de ser é tudo menos essa generalidade que poderia ser convertida em puro nada e que é o auge da abstração. Na filosofia da quiddidade, e particularmente na obra de Sohravardi, o que é alvo e incansavelmente denunciado é uma inconsistência: como podemos dizer que o ser é luz, uma efetividade viva e evidente, e ainda manter a primazia da quididade sobre a existência concreta? Não apenas a essência é determinada pela quididade, mas a existência, pensada como um atributo da essência, ou como um “ponto de vista” tirado da essência, não é mais do que ela mesma, não é mais o ato de ser da essência, não é mais nada.
Le Livre des pénétrations métaphysiques, p. 93 e p. 102 sq: a existência não é um existente que possuiria existência, mas “seu ato de ser existente é precisamente seu próprio ato de ser existência” ↩