Couliano (EMR) – Fantasmas

Ioan Couliano — Eros e Magia no Renascimento 1484 (CoulianoEros)

Primeira Parte — Fantasmas à obra

I História do fantástico

Do sentido interno
Nossa civilização nasceu do reencontro de várias culturas, cujas interpretações da existência humana eram tão diferentes que precisou uma enorme sacudidela histórica, acompanhada de uma crença fantástica, para realizar uma síntese durável.

Para o pensamento grego, a sexualidade não representava, em geral, senão um componente secundário do amor. Admitindo a ligação causal entre sexualidade e reprodução, não se insistia na existência de uma “razão natural” que dá a primeira uma finalidade puramente genesíaca.

Platão separa a esfera do amor autêntico das esferas respectivas (e não sobrepostas) da sexualidades e da reprodução, dando ao eros o estatuto de ligação entre o ente o ser em sua essência, ta onta ontos.

Atração consciente e ao mesmo tempo aspiração inconsciente, mesmo o eros profano tem, em Platão algo de imponderável. Em todo caso, o desejo físico formulado pela alma irracional e apaziguado por meio do corpo não representa, na fenomenologia do eros, senão um aspecto problemático e secundário deste.

Aristóteles não põe em casa a existência da dicotomia platônica alma-corpo. Mas debruçando-se sobre os segredos da natureza, sente a necessidade de definir empiricamente as relações dentre estas duas entidades isoladas, cuja união quase impossível do ponto de vista metafísico forma um dos mistérios mais profundos do universo. A intervenção de Aristóteles, inspirada nas teorias médicas sicilianas e empedoclianas produz resultados importantes: por um lado o eros será considerado da mesma maneira que a atividade sensorial, como uma das operações implicando a relação mútua alma-mundo sensível, sendo subtraído do império incondicionado da alma; por outro lado, o mecanismo erótico, como o processo de conhecimento sensível, terá que ser analisado em relação com a natureza pneumática e a fisiologia sutil do aparelho que serve de intermediário entre a alma e o corpo.

Este aparelho é composto da mesma substância — o espírito (pneuma) — da qual são feitas as estrelas e preenche a função de primeiro instrumento (proton organon) da alma em sua relação com o corpo. Um tal mecanismo oferece as condições requeridas para resolver a contradição entre o corporal e o incorporal: é tão sutil que aproxima-se da natureza imaterial da alma; e no entanto é um corpo que entrar, enquanto tal, em contato com o mundo sensível. Sem este pneuma astral, alma e corpo estariam completamente inconscientes um do outro, cegos como cada um é do reino do outro. Todas as atividades vitais assim como a mobilidade, a alma só pode transmitir por intermédio do proton organon, o aparelho pneumático situado no coração. Por outro lado, o corpo abre à alma uma janela para o mundo através dos cinco órgãos dos sentidos, cujas mensagens chegam ao mesmo dispositivo cardíaco, que se ocupa agora em codificá-las de maneira que sejam compreensíveis. Sob o nome de phantasia ou sentido interno, o espírito sideral transforma as mensagens dos cinco sentidos em fantasmas perceptíveis pela alma. Pois esta nada pode apreender que não seja convertido em uma sequência de fantasmas; em resumo, nada pode compreender sem fantasmas (aneu phantasmatos). Tomas de Aquino faz um uso quase literal na Suma Teológica: Intelligere sine conversione ad phantasmata este (animae) praeter naturam. O sentido interior ou sentido comum aristotélico, torna-se uma noção indissociável não somente da escolástica, mas de todo pensamento ocidental até o século XVIII, aparecendo por último talvez em Kant. Ainda permaneceu no século XIX em alguns filósofos, que reconheceram a afirmação de Aristóteles que o próprio intelecto tem um caráter de fantasma, que é phantasma tis, a exemplo de Kierkegaard: “O pensamento puro é um fantasma”.

Tudo se reduz a um problema de comunicação: alma e corpo falam duas linguagens não só diversas, ou mesmo incompatíveis entre si, mas inaudíveis entre si. O sentido interno é o único capaz de entendê-los e de compreendê-los, tendo assim o papel de traduzir, de acordo com a mensagem de um para outro. Dado que os vocábulos da linguagem da alma são fantasmas, tudo que lhe vem do corpo — compreendida a linguagem articulada — deverá ser transposto em um sequência fantástica. A alma tem primazia sobre o corpo. Decorrentemente o “fantasma tem também primazia absoluta sobre a palavra”, precedendo sua articulação e seu entendimento. Assim existiriam duas gramática: gramática da linguagem falada e gramática da linguagem fantástica, esta mais importante. Proveniente da alma e fantástico por essência, o intelecto é o único a desfrutar do privilégio de compreender a gramática fantástica, o que lhe permite compreender a alma. Esta compreensão que é uma arte devido a habilidade que é necessário desdobrar para surpreender os segredos do país mal conhecido onde o intelecto viaja, representa o postulado de todas as operações fantásticas do Renascimento: o eros, a arte da memória, a magia, a alquimia a cabala prática.

O pneuma fantástico

Fluxo e refluxo dos valores no século XII

Aculturação do Ocidente
Como uma mulher

O veículo da alma e a experiência pré-natal

Ioan Couliano