Jordan-Smith – A Epopeia de Gilgamesh

Excerto de “A Busca”, Jean Sulzberger (org.), trad. Octavio Mendes Cajado. Pensamento, 1989.

Desesperado, Gilgamesh andava de um lado para outro em torno do corpo do seu amigo Enkidu. Chorou amargamente e riscou o rosto com cinzas; rasgou as vestes e entrajou-se com peles de animais selvagens. No mais profundo do coração gritou:

— Como posso descansar, como posso estar em paz? Contemplai Enkidu, meu irmão e companheiro: o que ele é agora, eu o serei algum dia. Porque tenho medo da morte, preciso procurar Utnapightim, a quem os homens chamam o Distante, pois ingressou na assembleia dos deuses. Vou procurá-lo e aprenderei com ele o segredo da vida eterna.

Isso disse ele, no fundo do coração. Em seguida, varando o ermo, viajando pelas planuras e pelos desertos, Gilgamesh prosseguiu, à cata de Utnapishtim, que os deuses haviam salvo do Dilúvio, instalando-o em Dilmun, no jardim do sol, concedendo-lhe a vida eterna.

Longo era o caminho, através do ermo, que Gilgamesh tomou na direção da terra de Dilmun. Viajava dia e noite. Quando alcançou os passos da montanha, acampou. Por algum tempo, deixou-se ficar de olhos postos nas brasas da fogueira, lembrando do seu amigo Enkidu, depois adormeceu. À noite, porém, despertou de um sonho e deu com uma estranha visão: leões pulavam e brincavam ao luar, contentes da vida. Gilgamesh empunhou a espada e caiu sobre eles, como a seta de um arco retesado e venceu-os, destruiu-os e espalhou-lhes os restos.

De manhã, ergueu-se e seguiu caminho. Escalando os contrafortes no rumo dos passos da montanha, chegou, afinal, à grande montanha Mashu, que guarda o nascer e o pôr do sol. Nessa entrada se encontra o Povo-Escorpião, os dragões que guardam a passagem, cujo olhar é morte. A ele se dirigiu Gilgamesh, Rei de Uruk. Por um momento apenas protegeu os olhos; depois, reuniu os pensamentos e seguiu em frente.

Quando o viu chegar, destemido, o Homem-Escorpião disse ao companheiro:

— Esse que vem a nós é carne dos deuses. Replicou o companheiro:

Dois terços dele são deus, mas um terço é homem.

Então o Homem-Escorpião interpelou Gilgamesh, filho dos deuses:

— Quem é este que vem a nós, cansado e exausto de viajar? Vejo um homem com o corpo coberto de peles de animais selvagens, o rosto riscado de cinzas. A carne dos deuses está em seu corpo, mas o desespero lhe habita o coração. Percorreste um longo caminho: por que estás aqui? Que é que procuras, que te arriscas a morrer nos passos da montanha?

— Sou Gilgamesh, Rei de Uruk que aqui vim – respondeu Gilgamesh dirigindo-se ao Homem-Escorpião. – Por que não estaria eu cansado e exausto da viagem? Por que não estariam minhas faces desfiguradas e meu rosto pesaroso? Por que não estaria meu coração cheio de desespero e meu semblante cheio de angústia? Há amargura em meu coração, pois Enkidu, meu irmão e companheiro, está morto. Ele era o machado a meu lado, a força do meu escudo: juntos matamos o monstro Humbaba, juntos matamos o Touro do Céu. Enkidu está morto: derribaram-no as mãos dos deuses, e os juízes do mundo dos mortos, os Annunaki, levaram-no para baixo. Ao pé dele me sentei, vi a morte insinuar-se-lhe pelos membros, e fiquei com medo por mim: eu, Gilgamesh, Rei de Uruk, que matou Humbaba e o Touro do Céu, tenho medo de morrer.

Agora procuro Utnapishtim, o Distante, que os deuses salvaram do Dilúvio, que os deuses instalaram em Dilmun a fim de viver para sempre: ele de certo conhece o segredo da vida eterna, pode de certo responder às perguntas que me excruciam, de certo me dirá o que preciso fazer para que o destino do meu amigo não seja o meu também. Eis aí por que meu rosto é o de quem fez uma longa viagem, eis aí por que meu rosto está queimado pelo calor e pelo frio.

— Ninguém transpôs a passagem através do Monte Mashu — retrucou o Homem-Escorpião. — Doze léguas desse caminho estão imersas na escuridão, debaixo da montanha. Queres segui-lo? Não há outro. Nenhum homem realizou jamais a travessia. Não há luz ali, a presença de Shamash não encontra meios de entrar.

Gilgamesh respondeu:

— Ainda que seja na escuridão e no frio, ainda que seja na tristeza e na dor, suspirando e chorando, eu irei: abre a porta da montanha.

Disse, então, o Homem-Escorpião ao Rei de Uruk:

Gilgamesh, vejo em teu coração que estás decidido a ir, seja qual for o risco. Por conseguinte, Rei de Uruk, abrirei os passos da montanha, abrirei a porta do Monte Mashu. Possa o teu propósito aligeirar-te a jornada nas passagens escuras, possas tu encontrar o que procuras, possam os teus pés trazer-te são e salvo de volta. Prossegue! A porta de Mashu está aberta.

Ouvindo isso, Gilgamesh seguiu o caminho que levava ao interior da montanha. Quando entrou na senda, a treva fechou-se em torno dele. Gilgamesh percorre uma légua; densa é a treva, não há luz: não pode ver nada à sua frente e nada atrás de si. Gilgamesh percorre duas léguas; densa é a treva, não há luz: não pode ver nada à sua frente e nada atrás de si. Gilgamesh percorre três léguas; densa é a treva, não há luz: não pode ver nada à sua frente e nada atrás de si. Gilgamesh percorre quatro léguas, cinco léguas, seis léguas; densa é a treva, não há luz: não pode ver nada à sua frente e nada atrás de si. Depois de haver percorrido sete léguas, densa é a treva e não há luz: não pode ver nada à sua frente e nada atrás de si. Gilgamesh percorre oito léguas e desfere um grande grito: pois densa é a treva, não há luz: não pode ver nada à sua frente e nada atrás de si. Gilgamesh percorre nove léguas e agora sente o vento norte soprar-lhe no rosto; mas densa é a treva, não há luz: não pode ver nada à sua frente e nada atrás de si. Depois de haver percorrido dez léguas, o fim está próximo. Depois de haver viajado onze léguas, o brilho do nascer do sol incide sobre ele. Depois de haver percorrido doze léguas, irrompe da montanha e a luz de Shamash jorra sobre ele.

Dessa maneira, Gilgamesh encontrou o caminho para o jardim dos deuses, onde as árvores são de ouro, os galhos de prata e os frutos de gemas preciosas. As folhas são lápis-lazúli, e bagos de cornalina pendem sobre as vides. Cansado e exausto, Gilgamesh sentou-se na praia, a cabeça inclinada sobre os braços. Shamash viu-o, viu o Rei de Uruk, viu os labores e a exaustão do homem vestido com peles de animais selvagens. E Shamash condoeu-se do homem. Postou-se diante de Gilgamesh e disse:

Gilgamesh, para onde estás correndo? Não encontrarás a vida que buscas.

Gilgamesh ergueu a cabeça. Olhou para o deus e disse:

— Viajei por muito tempo na escuridão, no ermo e nas sendas da montanha. No escuro tenho laborado procurando Utnapishtim, o Distante. Deverei, porventura, cobrir a cabeça de terra e dormir o resto dos meus anos? Se bem eu possa não ser melhor que um homem morto, deixa-me, ao menos, olhar para a luz do sol.

Com sua tigela de ouro, ela está sentada no jardim à beira do mar: Siduri, a taberneira, fazedora de vinho. À sua porta chegou Gilgamesh: de longe ela o viu chegar. E pensou: “Quem é este que vem vestido de peles de animais selvagens? Um ladrão, seguramente, é ele, um bandoleiro que conseguiu chegar até aqui”. E levantou-se para trancar a porta. Entretanto, no instante em que a tranca ia fechar-se, Gilgamesh enfiou o pé na porta e gritou:

— Mulher, taberneira, fazedora de vinho, por que me trancas a porta? Espatifarei teu portão, derrubarei tua porta, pois sou Gilgamesh, Rei de Uruk. Doze léguas no escuro percorri para chegar aqui. Não podes barrar-me o caminho!

Em seguida, empurrando a porta para o lado, entrou no pátio. Disse-lhe Siduri:

— Por que vieste para cá? Procuras o vento? Teu rosto está riscado de cinzas e o desespero te habita o coração.

Gilgamesh replicou:

— Por que não estaria eu cansado e exausto da viagem? Por que não estariam minhas faces desfiguradas e meu rosto pesaroso? Por que não estaria meu coração cheio de desespero e meu semblante cheio de angústia? Há amargura em meu coração, pois Enkidu, meu irmão e companheiro, está morto: derribaram-no as mãos dos deuses, e os juízes do mundo dos mortos, os Annunaki, o levaram para baixo. Ao pé dele me sentei e vi a morte insinuar-se-lhe pelos membros, e fiquei com medo por mim.

Agora procuro Utnapishtim, o Distante, que os deuses salvaram do Dilúvio, que os deuses instalaram em Dilmun a fim de viver para sempre: ele de certo conhece o segredo da vida eterna, pode, com certeza, responder às perguntas que me excruciam, de certo me dirá o que preciso fazer para que o destino do meu amigo não seja o meu. Eis aí por que meu rosto é o de quem fez uma longa viagem, eis aí por que meu rosto está queimado pelo calor e pelo frio.

Disse-lhe Siduri:

Gilgamesh, para onde corres tu? Não encontrarás a vida que procuras. Quando os deuses criaram o homem, destinaram-lhe a morte, e reservaram a vida para si. Quanto a ti, Gilgamesh, enche a barriga de comida e vinho, sê alegre dia e noite, e dança, entrega-te aos prazeres e jubila. Veste roupas novas, banha-te em água fresca, trata com ternura a criança que te segura a mão, e torna feliz a esposa com o teu abraço: esse é o destino do homem.

Gilgamesh continuou sentado, em silêncio, por muito tempo antes de falar:

— Mulher, como posso jubilar-me com a vida quando Enkidu, meu irmão e companheiro, está morto? 0 que ele é agora, sê-lo-ei algum dia. Devo esquecer minha sina? Jovem mulher, tu te sentas à beira do mar e lhe contemplas o coração: dize-me agora, qual é o caminho para Dilmun, o caminho para Utnapishtim, o Distante, para que eu possa pedir-lhe o segredo da vida eterna? Dá-me, ó, dá-me as instruções para a passagem sobre o oceano, ou terei de continuar vagueando no ermo

Disse, então, Siduri:

Gilgamesh, Gilgamesh, não há como atravessar o Oceano da Morte. Quem quer que tenha vindo, desde os tempos mais remotos, não cruzou aquele mar. O Sol em sua glória cruza o Oceano, mas quem, além de Shamash, pode efetuar a passagem? Profundas são as águas da morte, e que farás tu quando chegares a elas? Vejo, porém, que em teu coração estás determinado a ir, seja qual for o risco. Portanto, eu te ajudarei.

Desce às matas à beira do mar. Lá encontrarás Urshanabi, o barqueiro de Utnapishtim. Com ele estão as coisas sagradas, os Uns de Pedra. Encontra Urshanabi onde ele, sentado, entalha a serpente da proa do seu barco, olha-o bem e deixa que ele te veja. Talvez te ajude a cruzar as águas. Se não quiser fazê-lo, terás de voltar. Sem a ajuda dele não há como chegar à terra de Dilmun.

Ouvindo isso, Gilgamesh deu um salto e saiu correndo para as matas à beira do mar, com a espada numa das mãos e o machado na outra. Destroçou os Uns de Pedra com que topou pelo caminho. Encontrou Urshanabi no fundo das matas, sentado, acepilhando a serpente da proa do seu barco, e disse ao barqueiro:

— Mostra-me o caminho para Utnapishtim, que vive para sempre na terra de Dilmun. Se o caminho for possível, ainda que seja sobre as águas da morte, irei até lá, ou continuarei vagando pelo ermo.

Urshanabi ergueu os olhos para ele, olhou longamente o coração do Rei de Uruk. E disse:

Gilgamesh, tuas próprias mãos dificultaram tua jornada, quando destruíste os Uns de Pedra, que amparavam este barco em sua passagem. Difícil era o caminho antes disso: agora é quase impossível. Os Uns de Pedra me protegiam das águas da morte, impediam que as águas me tocassem. Agora, onde está a minha proteção? Tens que proporcionar-ma. De outro modo, não será possível cruzar o oceano.

Entra nas matas. Com o machado, corta varas de varejar. Corta cento e vinte varas, Gilgamesh, cada qual de sessenta cúbitos de comprimento. Em seguida, reveste-as de betume e coloca-lhes ponteiras. E quando todas estiverem prontas, traze-as aqui.

Ouvindo isso, Gilgamesh foi diretamente para a floresta cortar varas para varejar: cento e vinte varas cortou, cada qual de sessenta cúbitos de comprimento; pintou-as com betume, ajustou-lhes ponteiras e levou-as para Urshanabi. A seguir, juntos, puseram o barco no mar.

Célere sobre o mar correu o barco do barqueiro; em três dias cobriu a distância de um mês e meio e atingiu as águas da morte, que impedem a passagem para Dilmun. Disse, então, Urshanabi a Gilgamesh:

— Continua a trabalhar, Gilgamesh: pega uma vara e enfia-a no mar, mas não deixes que tuas mãos toquem a água. Gilgamesh, pega a segunda vara e a terceira e a quarta. Gilgamesh, pega a quinta vara, a sexta e a sétima. Agora, Gilgamesh, pega a oitava vara e a nona e a décima. Gilgamesh, pega a undécima vara e a duodécima.

Assim, lentamente, sobre as águas da morte, eles conduziram o barco e, depois que Gilgamesh usou a centésima vigésima vara, ficaram sem varas. O Rei de Uruk despiu-se e ergueu os braços como se fossem mastros, com as peles de animais em suspenso, como se fossem velas. O vento soprou-lhe nas vestes e, lentamente, cruzaram as águas da morte: assim Urshanabi levou Gilgamesh a Dilmun, à praia em que vivia Utnapishtim, que os homens denominam o Distante.

Na praia mais recuada daquele mar estava Utnapishtim, sentado, descansando. Erguendo o olhar para o horizonte, viu uma estranha visão: lá estava o barco do barqueiro e, de pé na proa, um homem forte, quase um deus, com os braços erguidos como se fossem um mastro e as vestes drapejando ao vento. “Quem é este que chega?” perguntou Utnapishtim a si mesmo. “Não é nenhum criado meu. A carne dos deuses está em seu corpo, mas o desespero lhe habita o coração.” Em seguida, quando o barco chegou à praia, gritou:

— Como te chamas tu, que vens usando as peles dos animais selvagens, com o rosto riscado de cinzas e o desespero no coração? Por que fizeste a difícil passagem com os braços erguidos como um mastro? Não foi o cansaço que trouxe fastio aos teus ossos; conta-me qual é a razão da tua vinda.

Ao descer à praia, Gilgamesh falou:

— Sou Gilgamesh, da Casa de Anu, Rei de Uruk. Fiz uma longa jornada; por que não estaria eu cansado e exausto da viagem? Por que não estariam minhas faces desfiguradas e meu rosto pesaroso? Por que não estaria meu coração cheio de desespero e meu semblante cheio de angústia? Enkidu, meu irmão e companheiro, está morto. Era o machado a meu lado, a força do meu escudo: juntos matamos o monstro Hum-baba, juntos matamos o Touro do Céu. Derribaram-no, porém, as mãos dos deuses, e os juízes do mundo dos mortos, os Annunaki, levaram-no para baixo. A beira dele me sentei e vi a morte insinuar-se-lhe nos membros, e fiquei com medo por mim. Eu, Gilgamesh, Rei de Uruk, que matou Humbaba e o Touro do Céu, tenho medo de morrer.

Vim à procura de Utnapishtim, o Distante, que os deuses salvaram do Dilúvio, que os deuses instalaram em Dilmun a fim de viver para sempre: ele de certo conhece o segredo da vida eterna, pode, seguramente, responder às perguntas que me excruciam, por certo, me dirá o que preciso fazer para que o destino do meu amigo não seja o meu.

Disse-lhe Utnapishtim:

— Que é o que dura para sempre? Acaso edifica o homem uma casa destinada a perdurar para sempre? São os contratos assinados para todo o tempo? Porventura dividem os irmãos a sua herança a fim de guardá-la para sempre? Persiste o ódio para sempre na terra?

Que é o que dura para sempre? Dura para sempre a maré enchente do rio? O rosto da libélula vê para sempre o rosto do sol? Desde os dias de antanho não há permanência. Como são parecidos os adormecidos e os mortos! Dir-se-ia que a morte é a imagem do sono, e o sono a imagem da morte. Os Annunaki se reúnem e, com Mammetum, a deusa do destino, decretam a vida e a morte de todas as criaturas. A vida do homem se desdobra à proporção que ele a vive, mas não se revela o dia da sua morte.

Irado, Gilgamesh recalcitrou:

— Percorri um longo caminho, e para quê? Pensei encontrar um homem preparado para o combate, um guerreiro. Em vez disso, encontro um velho cansado, refestelado ao sol. E, todavia, estás aqui. Dize-me, então, como foi que vieste a entrar na companhia dos deuses e a possuir a vida eterna?

Disse Utnapishtim:

— Revelar-te-ei um mistério.
Contar-te-ei o segredo dos deuses.
Falar-te-ei, Gilgamesh,
De um triste mistério dos deuses:
De como, certa feita, tendo-se reunido,
Resolveram inundar a terra de Shuruppak.
Ea, de olhos claros, sem dizer nada ao pai, Anu,
Nem ao Senhor, o grande Enlil,
Nem ao distribuidor de felicidade, Nemuru,
Nem mesmo ao Príncipe do reino subterrâneo, Enua,
Chamou a si o filho de Ubara-Tutu;
E disse-lhe: “Constrói um barco para ti.”

Em seguida, contou Utnapishtim a Gilgamesh como viera a sobreviver ao “Dilúvio antes do Dilúvio”; como, por seis dias e noites, o barco flutuou sobre o mar e acabou descansando no topo de uma montanha; como os deuses se abrandaram e levaram-nos, a ele e à esposa, e os instalaram muito longe, na terra de Dilmun.

— Quanto a ti, Gilgamesh — concluiu Utnapishtim —, quem convocará os deuses para que se reúnam por tua causa? Quem defenderá o teu caso para poderes encontrar a vida que procuras? Mas, vamos, façamos primeiro um teste. Se vingares prevalecer contra o sono durante seis dias e sete noites…

Utnapishtim ainda estava falando quando o sono, como um nevoeiro, estendendo-se sobre ele, cerrou os olhos de Gilgamesh. E Utnapishtim, o Distante, disse à esposa:

— Olha agora para ele, o grande herói! Esse é o homem que ambiciona a vida eterna! O sono, como um nevoeiro, se estende sobre ele.

A esposa de Utnapishtim disse ao marido:

— Toca-o e desperta-o, para que ele possa voltar à própria terra em paz, para que possa voltar pela porta através da qual veio ter conosco.

— Todos os homens são enganadores — tornou Utnapishtim. — Até a ti ele buscará enganar. Portanto, assa pão cada dia que ele dormir, um pão por dia, coloca-o ao lado da sua cabeça e marca na parede o número de dias que dorme.

Destarte, a esposa de Utnapishtim assou pão naquele dia, e todos os dias dali por diante enquanto Gilgamesh dormia. Depois de sete dias, Utnapishtim tocou o homem e este acordou:

— Eu mal havia pegado no sono, quando, tocando-me, tu me despertaste — disse Gilgamesh.

Utnapishtim, todavia, apontou para os pães e para as marcas na parede.

— Conta os pães, Gilgamesh — disse-lhe Utnapishtim. — Fica sabendo quantos dias dormiste. Vê, o primeiro pão está duro, o segundo parece feito de couro, o terceiro está úmido, a crosta do quarto mofou, o quinto criou bolor e o sexto está fresco, e o sétimo pão ainda traz consigo o calor do forno.

— Que farei? – exclamou Gilgamesh. – Aonde irei? O ladrão da noite já se apoderou dos meus membros, a morte se acocorou num canto. Onde quer que eu ponha o pé, ali a encontro.

Utnapishtim dirigiu-se, então, a Urshanabi, o barqueiro.

— Maldito sejas a partir deste dia, Urshanabi, pois teu barco nunca mais encontrará guarida nestas plagas. Este homem que trouxeste aqui.. . conduze-o ao lavadouro, para que possa refrescar os membros, dá-lhe roupas que lhe cubram a nudez, e serve-o bem em sua jornada de regresso.

Assim Urshanabi levou Gilgamesh ao lavadouro, e o Rei de Uruk refrescou os membros. E, enquanto ele se lavava, a esposa de Utnapishtim disse ao marido:

— Cansado e exausto da viagem chegou Gilgamesh a estas praias. Para ver-te, esforçou-se ao máximo. Deverá sair daqui de mãos vazias? Dá-lhe qualquer coisa, um presentinho que ele possa carregar para o seu país, a fim de que a sua longa busca não seja de todo vã.

Utnapishtim desceu ao lavadouro e chamou Gilgamesh:

Gilgamesh, Rei de Uruk, chegaste às praias de Dilmun cansado e exausto da viagem. Tu te esforçaste ao máximo para ver-me. Que queres levar de volta contigo, para que a tua busca não tenha sido em vão? Gilgamesh, revelar-te-ei uma coisa secreta, um mistério dos deuses te contarei. Existe uma planta, com espinhos como os de uma rosa, que cresce debaixo d’água. Seus espinhos ferirão tuas mãos e rasgarão tua carne mas, se conseguires pegá-la, tuas mãos segurarão aquilo que te dará uma nova existência.

Gilgamesh nadou para a praia e amarrou pedras aos pés. Abriu as portas da eclusa e deixou que a corrente de água doce o carregasse para o canal mais profundo. Quando as pedras o levaram para o fundo, Gilgamesh viu a planta que lá crescia, uma planta com espinhos como os de uma rosa. Agarrou a planta, cujos espinhos lhe laceraram a carne, mas com ambas as mãos a agarrou e, cortando as pedras atadas aos pés, ascendeu à superfície.

Gilgamesh disse a Urshanabi, o barqueiro, quando subiu ao barco:

— Olha, meu amigo! Vem ver esta planta maravilhosa. Com ela o homem reconquista a mocidade perdida, por efeito dela recupera a sua força! Levá-la-ei comigo a Uruk e a darei aos velhos para que a comam. Chamar-lhe-ei “Os Velhos Remoçam”, e quando eu também, afinal, a tiver comido, terei de volta toda a minha juventude.

Pela passagem através da qual tinha vindo, regressou Gilgamesh para Uruk, a cidade de muros robustos, e Urshanabi com ele foi. Vencidas trinta léguas, acamparam ao pé de um manancial de água fria.

Gilgamesh desejava lavar a poeira do corpo, e desceu à fonte para banhar-se, deixando a planta ao lado da água. No fundo da água havia uma serpente, que, aspirando a doçura da flor, ergueu-se acima da superfície. Silenciosa, resvalou na direção da planta e levou-a embora. Imediatamente, a antiga pele da serpente se desprendeu e ela voltou para o manancial. Quando Gilgamesh saiu da água, viu o que tinha acontecido e chorou.

Por amor do que esfalfei meus membros, Urshanabi?
Por amor do que se consumiu o sangue do meu coração?
Nenhuma bênção trouxe eu para mim nem para outros…
Só à serpente debaixo da terra prestei um bom serviço!

Essa é a história de Gilgamesh, da Casa de Anu, Rei de Uruk, a cidade das fortes muralhas. Esse foi o homem que conheceu todos os países do mundo, que tudo viu, que conheceu mistérios e coisas secretas. Partiu numa longa jornada, esforçou-se ao máximo, acabou cansado e exausto de tanto viajar. Trouxe-nos uma história dos dias anteriores ao dilúvio, e gravou numa pedra toda a história.

A lua cresce e míngua,
O peixe nada para o anzol,
O cervo descobre o laço:
Na curva, o carro
Vira e desaparece:
Um dia, o pastor
Vai para a montanha,
Um dia o rei
Vai para a cama.
Sandálias vazias
Atestam-lhe os pés.

Gilgamesh