Eudoro de Sousa — Comentário sobre a Epopeia de Gilgamesh
Jornada de Gilgamesh
Excertos de “Horizonte e Complementaridade” de Eudoro de Sousa
12. Complexa codificação do mistério, para o qual aponta aquele momento da grande viagem em que superada parece a mais contraditória das contradições, é a que se nos depara na literatura das catábases. Propriamente, «catábase» quer dizer «descida»; usa-se, porém, com o significado mais restrito de «descida aos infernos», acesso ao reino dos mortos, situado nas profundezas da terra, miraculosamente aberto a alguns viventes. No início da tradição, a espantosa aventura é privilégio dos deuses: no Oriente, quem primeiro desce aos infernos é Inanna-Ishtar e, na Grécia, Core-Perséfone. Depois vêm os semideuses, como o Gilgamesh babilónico, «dois terços deus e um terço homem», e o Héracles grego, filho de Zeus e de uma mulher mortal; por fim, incerto número de heróis, entre os quais avultam, por mais divulgado exemplo, Ulisses e Eneias. A tradição literária, para aquém-fronteiras da Antiguidade, reemerge gloriosamente na Divina Comédia; e se, como nos parece, a área semântica da palavra tem de ser ampliada até que atinja o mais lato sentido de «transposição de todos os limites da experiência comum», também os dois últimos cantos de Os Lusíadas reproduzem de modo inédito o modelo antigo de uma catábase (v., do autor, «Os dois últimos cantos de Os Lusíadas à luz da tradição clássica», em Cultura, n.° 8,1972, PP. 66 e segs.). A mais antiga viagem ao País dos Mortos é, sem dúvida, uma catábase stricto sensu: Inanna, «lá do grande em cima pôs os olhos no grande em baixo». As ambiguidades topográficas acerca do Além só começam a entre-ver-se a na última versão do poema de Gilgamesh: o teor da parte final pressupõe um verdadeiro «inferno», o mundo subterrâneo de onde Enkidu irrompe «como uma lufada de vento»; antes, porém, já o herói da epopeia babilónica empreendera a inaudita jornada em busca do segredo da vida, e essa, decerto que não termin.a no «grande em baixo». Gilgamesh segue o caminho do sol, à superfície da terra, até o horizonte a oeste. Após haver cruzado defesos mares, atravessa a montanha que «diariamente guarda o levante e o poente, / cujos picos chegam à abóbada do céu / e cujos seios, em baixo, atingem os infernos». O túnel tenebroso que trespassa o próprio corpo da montanha abre-se, do outro lado, para o deslumbramento de um jardim plantado com árvores de maravilha: «a cornalina dá seus frutos, / dela pendem cachos belos de contemplar, / do lápis-lazúli brota folhagem, / também este dá frutos viçosos, belos de olhar». O jardim deve marginar o Oceano, pois, no prosseguimento da epopeia, a versão assíria menciona pela primeira vez a divina copeira, Siduri, «que habita junto da solidão do mar» (Schott), ou «junto do mar profundo» (Speiser) e, ao apelo de Gilgamesh, para que lhe descubra onde se encontra a morada de Utnapishtim, de quem o herói espera a revelação do segredo da vida, ela responde: «nunca houve, Gilgamesh, uma travessia / e ninguém, vindo desde o começo dos dias, poderia transpor o mar. / Só o intrépido Shamash (o Sol) atravessa o mar; / outro, que não Shamash, quem poderia cruzá-lo? / Árduo é o lugar da travessia, / muito difícil o caminho para lá, / e no meio correm as Aguas da Morte, vedando-lhes o acesso». Gilgamesh persiste em seu propósito, consegue atravessar as Aguas da Morte e chegar à presença de Utnapishtim, o único, mortal nascido, que, por incomparável mercê dos deuses, obteve a imortalidade; mas só para reconhecer que, afinal, a morte é inevitável.