Excertos resumidos de «Figuras da Imanência»
- As quatro palavras pelas quais começa o texto do Clássico da mutação, a propósito do primeiro hexagrama, Qian, composto de seis traços yang, devem ser entendidas do ponto de vista da capacidade: elas denotam, formando série, os diversos aspectos da aptidão de constante iniciativa que é própria do Céu e lhe permite progredir sempre, em seu curso, sem jamais se desviar nem cansar.
- Resulta dessa atividade o fato de as estações não pararem de se encadear e a existência não parar de advir: essa fórmula de base nos diz, portanto, o que serve para promover a realidade.
- O primeiro dos quatro termos (yuan) evoca, em relação com o simbolismo da cabeça, a faculdade de começar. Tudo no mundo encontra sua “origem” e seu “estopim” nessa energia “incitadora” e “expansiva” que não cessa de se desdobrar.
- Não há nada de “grande” que essa energia yang não possa “atingir”, nada de “pequeno” que ela não possa “penetrar”, e, operando de maneira “harmoniosa e doce”, ela “triunfa” sempre sem encontrar obstáculo: por isso sua “amplidão” é “incomparável”.
- Na natureza, tanto as forças cósmicas como as mínimas individuações aí encontram seu “capital” de partida e seu “fundamento”; e, no que concerne ao homem, essa faculdade de começo está na origem não só de sua existência biológica, mas também de sua “natureza” moral:
- Ela representa nele o capital de “humanidade” (no sentido do ren confuciano) que permite à nossa consciência não se dobrar egoisticamente sobre si mesma, mas estar aberta às outras e se sentir solidária com o mundo inteiro (“desdobrando-se” e “comunicando-se” intuitivamente, de consciência a consciência, notadamente quando ela reage de modo imediato à infelicidade de outrem, como em Mencius).
- A mesma universalidade é, por isso, necessária de ambas as partes: do mesmo modo que a faculdade de começo, que é própria ao Céu, não se interrompe jamais e “comanda” todas as situações como todos os existentes, do mesmo modo esse sentimento moral deve estar no início de todos os nossos comportamentos, bem como inspirar continuamente nossa conduta, sem jamais se esgotar.
- A moralidade corresponde simplesmente à aptidão de iniciativa, e de “criatividade”, de nossa consciência: à aptidão desta última de continuar a progredir em seu curso, não cessando de se expandir e dar vida.
- O fato de a consciência assim se valorizar por sua “iniciativa”, ou ainda, o de sua virtude ser constantemente “iniciadora”, não significa que ela procure impor seu querer ao real (veremos que a sabedoria, ao contrário, é saber desposar o curso do real e se conformar a ele); mas, antes, que, abrindo-se à virtude incitadora do real (isto é, que não cessa de desdobrar a realidade) e permanecendo “em vigília”, ela chega a se situar sempre a montante com relação ao desenvolvimento do curso das coisas; e que, desde então, coincidindo com a emergência dos fenômenos, ela evolui livremente em relação a eles em vez de sofrer passivamente, a jusante, seu peso.
- Sua “criatividade” apoia-se, portanto, no fato de que suas disposições interiores (depois, sob sua influência, as de outrem) não param, do mesmo modo que os fenômenos do mundo, de se “transformar” e se renovar — em vez de se congelarem.
- Por isso o mal não está inscrito no ponto de partida de nossa natureza, mas corresponde apenas à privação dessa faculdade de impulso (desse ir para a frente): quando nossa consciência, em vez de se desdobrar, se fecha, se deixa arrastar pelas realidades do exterior e se avassalar por elas (sob a pressão dos desejos) ou se deixa condicionar pelo hábito e se esclerosa, e renuncia a sua livre e generosa progressão; quando, em vez de animar o mundo, ela se torna inerte, não mais em expansão, e renuncia à sua criatividade.
- O segundo termo dessa enumeração (heng) deve ser compreendido no prolongamento direto do anterior e significa a progressão e o desdobramento.
- Ele evoca, à imagem da energia que se expande no interior dos alimentos e os faz cozinhar, o poder que essa capacidade de iniciativa possui de se propagar cada vez mais através do real e de fazê-lo atingir seu pleno desabrochamento.
- Da dimensão transindividual desse processo, de que resulta o caráter de continuum da existência, o comentário canónico dá conta a partir dos motivos das “nuvens” e da “chuva”, e ao modo de um “fluxo” ininterrupto: As nuvens passam, a chuva se derrama: o fluxo dos diversos existentes não cessa de se atualizar.
- Passemos agora desses fenômenos físicos, que são sua expressão sensível, àquilo que essa capacidade constitui, em seu princípio invisível: ela é essa corrente ou esse “fluxo” que não cessa de atravessar as individuações e as renova segundo o próprio gênero delas (cf. sentido de pin); graças a ela, a existência não cessa de “se atualizar” e é constantemente promovida.
- Os dois últimos termos dessa formulação de base se corroboram um ao outro, explicitando o alcance dos dois primeiros. Essas quatro noções remetem todas a uma “mesma lógica”.
- A noção de “proveito” (li) evoca a eficácia que resulta dessa capacidade de iniciativa e de progressão, e conclui com a vantagem que daí decorre para todos os existentes:
- bem longe, portanto, de significar um benefício particular e egoísta (que corresponde apenas ao interesse individual), ela realça a positividade de conjunto desse processo em que o desdobramento da energia yang se realiza para todos e “sem se economizar”.
- A última dessas noções, finalmente, a de “integridade” (jogando com os dois sentidos desse termo: zhen), denota a “retidão” ao mesmo tempo em que a constância e a “solidez”:
- “proveito” e “integridade” estão em pé de igualdade e essas duas noções se implicam mutuamente.
- Como o proveito que resulta do exercício dessa capacidade de iniciativa corresponde sempre ao “quinhão de cada um” e porque ele respeita assim o interesse comum, esse proveito é sempre “correto”;
- reciprocamente, a retidão que desse modo se manifesta com relação a todas as situações e todos os existentes só pode ser proveitosa para todos.
- “Virtude e felicidade procedem da mesma origem e jamais se contradizem”.
- a conjunção da felicidade e da virtude não implica, portanto, nenhuma ultrapassagem da experiência ou do sensível, ela se realiza totalmente no interior mesmo desse processo e sponte sua.
- O comentário canónico dá conta das duas noções de “proveito” e de “integridade” conjugadamente, por meio de uma evocação de conjunto:
- Vasta claridade, do fim ao começo, as seis posições advêm cada uma em seu tempo: em todo tempo, cavalgar os seis dragões para dirigir o céu; o caminho de Qian a capacidade de constante iniciativa modifica e transforma, e cada um recebe a natureza que lhe cabe e constitui sua retidão: (todos) se conservam e se unem numa completa harmonia; assim são o “proveito” e a “integridade”.
- Antes de ser a do Sábio (como o compreendem muito estreitamente Legge ou Wilhelm), a “vasta claridade” para a qual se abre esse desenvolvimento é a do Processo em si mesmo, o “Céu”: o que leva a expressão a significar que esse processo de advento da realidade não se desenrola ao acaso, de maneira cega, e também que esse processo não cessa de se encadear a si mesmo e que seu desenrolar é ininterrupto (o “fim” já contém o “começo”, do mesmo modo que está contido nele, não existe portanto início primeiro).
- As “seis posições” são certamente as dos seis traços do hexagrama que expõem as etapas sucessivas do desenvolvimento dos seres e das coisas. Se cada uma das posições advém “em seu tempo”, essa diversidade das ocasiões não deve fazer esquecer que todas concorrem para o mesmo efeito, como os cavalos de uma única parelha: o do curso “dirigido” dos fenômenos e a boa marcha do mundo.
- Embora a mutação de que o real é presa seja incessante, cada individuação que resulta desse grande processo de engendramento recebe dele sua “norma” própria que constitui sua “natureza” e lhe cabe como “destino”). E, dado que cada uma respeita essa exigência interna à sua natureza, essas existências individuais se preservam uma à outra, essas sinas se unem e se conciliam. O resultado, nessas condições, só pode ser a “harmonia”.
- Vasta claridade, do fim ao começo, as seis posições advêm cada uma em seu tempo: em todo tempo, cavalgar os seis dragões para dirigir o céu; o caminho de Qian a capacidade de constante iniciativa modifica e transforma, e cada um recebe a natureza que lhe cabe e constitui sua retidão: (todos) se conservam e se unem numa completa harmonia; assim são o “proveito” e a “integridade”.
- A noção de “proveito” (li) evoca a eficácia que resulta dessa capacidade de iniciativa e de progressão, e conclui com a vantagem que daí decorre para todos os existentes:
- Graças à “claridade” de que desfruta o Sábio constantemente porque sabe desposar de ponta a ponta, em seu foro interior, a lógica iniciadora e reguladora do curso das coisas (noção de cheng), este pode tomar igualmente parte em todos os estágios do desenvolvimento da realidade, conformar-se àquilo que cada ocasião particular exige e jamais se desviar de sua conduta. “Proveito” e “integridade” tomam, então, um sentido político: graças à influência expandida por seu sentimento moral em constante progressão, o Sábio é benéfico aos outros, “sem mesmo que eles disso se dêem conta”, sua virtude os penetra insensivelmente e os eleva da mesma maneira que a vida, desdobrando-se continuamente em nós, opera sem que o saibamos; ele os “conserva”, portanto, mantendo-os unidos na “retidão”: como conclui a fórmula canónica que segue esse desenvolvimento, a tradução social dessa harmonia natural é a “paz” em “todos os países”.
- Assim, a moralidade é apenas o reflexo, no plano humano, daquilo que constitui a lógica de advento da realidade. Como se viu, é a mesma capacidade de iniciativa e de desdobramento que se encontra na origem de todos os fenômenos e deve animar constantemente nossa consciência, dirigir nossa conduta.