Karma Classico

DEFINIÇÃO CLÁSSICA DE KARMA

Noções Filosóficas: Excertos traduzidos e comentados de “Les Notions philosophiques”. PUF, 1990.

Enquanto no budismo designa exclusivamente o ato, o fruto ou efeito do ato sendo designado pelo termo phala, na literatura hindu, no caso da lei do carma, conotar ao mesmo tempo o ato e seus efeitos.

Nos textos védicos, carma se entende como ato ritual, o sacrifício (vide anna e yajna). A atividade ritual é necessária à manutenção da ordem cósmica e sócio-religiosa (dharma). Ela busca o bem estar aqui em baixo e a imortalidade no alé para o sacrificante.

A ortodoxia bramânica distingue três tipos de rito:
*cotidianos e obrigatórios (nitya-karman), tais as oblações ao fogo, a recitação pessoal do Veda;
*ocasionais (naimittika-karman), marcando um evento particular: nascimento, iniciação, casamento, morte;
*votivos (kamya-karman), realizados para satisfazer um desejo definido.

A esta concepção ritualista do ato, prescrito e valorizado, se oporá a preocupação maior dos “renunciantes” que é de se liberar da “segunda morte” e do ciclo dos renascimentos. O fruto dos atos não perdura indefinidamente. A estadia no céu é temporária; uma vez os méritos esgotados, morre-se no além. A ideia de “segunda morte” (punar-mrtyu) já se encontra nos Brahmanas, mas ainda não se trata da teoria da transmigração ou samsara. É com os Upanixades védicos que a ideia de “segunda morte” se completará por aquela dos renascimentos em número indefinido. É o conhecimento que permite discriminar entre o agente sempre trabalhado pelo desejo dos frutos, causa do devir, e o Si (atman) puro núcleo ontológico, além de qualquer mácula, auto-suficiente, fora de determinações.

Como se enuncia a lei do carma nos principais textos hindus, e quais são suas principais características?
*As alusões mais antigas remontam aos primeiros Upanixades védicos:
**Brihadaranyaka Upanixade: “Tornamo-nos bons pela ação boa, maus pelas ação má” (vide Franz von Baader); “Como se age, como se comporta, assim a gente se torna. Quem faz o bem se torna bom, quem faz o mal, mau; virtuosos se se agiu bem, mau se se agiu mau”.
**Chandogya Upanixade explica, por seu lado, o processo de renascimentos e de retorno aqui em baixo (V, 3-10), e conclui: “Aqueles que tem uma conduta satisfatória tem a perspectiva de obter um nascimento satisfatório, brâmane, kshtriya ou vaysya. Aqueles, ao contrário que se sujaram por uma conduta má tem a perspectiva de um nascimento maculado em cão ou porco…” (V, 10, 7).
Representa-se a hereditariedade cármica de modo estreitamente associado à hereditariedade biológica: a natureza da matriz, divina, humana, animal, demoníaca, etc., depende dos hábitos anteriormente contraídos.
*Nas leis de Manu por volta de nossa era, que a literatura hindu apresenta uma exposição completa, adulta, da lei do carma. Manu estabelece uma relação termo a termo contra uma falta cometida anteriormente e tal doença associada à hereditariedade biológica.
**”Para crimes cometidos nesta vida ou para faltas de uma existência precedente, alguns homens de coração perverso são afligidos de certas doenças e deformidades”. (… seguem-se diferentes exemplos) Desta maneira, segundo a diferença das ações, nascem homens desprezados pelas pessoas de bem, idiotas, mudos, cegos, surdos e disformes. Consequentemente, deve-se sempre fazer penitência a fim de se purificar; pois aqueles que tiverem expiado seus pecados renascerão com estas marcas ignominiosas” (Leis de Manu, XI, 49-53).
**Um aspecto da retribuição é que se dá no órgão mesmo que tenha sido a sede do ato: “O ser dotado de razão obtém recompensa ou uma punição, pelos atos do espírito, no seu espírito; para aqueles da palavra, nos órgão da palavra; para os atos corporais, no seu corpo. Para os atos criminosos provindo de seu corpo homem passa depois da morte ao estado de criatura privada do movimento; para as flatas sobretudo da palavra ele se reveste na forma de um pássaro ou de uma animal selvagem; para as faltas mentais especialmente, renasce na condição humana a mais vil” (Leis de Manu, XII, 8, 9)
**Manu enuncia também as diferentes destinações (gati) e sua hierarquia em relação com as três tendências ou qualidades (gunas) que terão predominado na vida: sattva, a bondade luminosa; rajas a atividade apaixonada; tamas a obscuridade (Leis de Manu XII, 3). Sempre pronto como legislador a insistir sobre as faltas e sobre as penas, descreve aquelas infligidas por Yama, o rei dos mortos.
***No livro XII e último consagrado ao mecanismo dos renascimentos e da transmigração, estabelece ainda uma correspondência termo a termo entre tal tipo de conduta e o gênero de corpo no qual se renascerá: cão, demônio canibal, etc..
*As principais características da lei do carma são:
**Consagra o reconhecimento da responsabilidade individual, algo que a diferencia na história das culturas:
***”O ser vem ao mundo só, desaparece só; só ele recebe o fruto de seus bons atos como de seus maus atos” (IV, 240).
***Como um bezerro encontra sua mãe entre milhares de vacas, assim o ato anteriormente cometido encontra seu autor certamente”
***Textos posteriores como os Puranas admitem, no entanto, a transferência de méritos de pais para filhos; sendo o comportamento do rei suscetível de afetar a condição de seus súditos e inversamente.
**Um erro comum no Ocidente é representar méritos e deméritos sob a imagem de uma conta bancária onde o saldo credor e saldo devedor chegam a um equilíbrio, uma balanço global.
***Não é assim pois a lei do carma é distributiva, diferindo de um Juízo Final; sendo distributiva, a retribuição supõe muito tempo ou mesmo um sem fim; assim também não parece indicar um começo, sendo a condição presente resultante de atividades passadas.
***A ideia de samsara enquanto transmigração universal está implícita, sendo o caráter distributivo , e não coletivo, da germinação dos atos que justamente a impõe como transmigração sem começo nem fim, pelo menos ao nível do ato.
***O conhecimento para os renunciantes pode ser eficaz, ou o desapego ao fruto dos atos, segundo o ideal do Bhagavad Gita.
**Um terceiro ponto importante dentre as características da lei do carma, é que este somente se acumula no curso de existências humanas, e isso por definição se se entende por carma o ato deliberado e voluntário. Em revanche, o consumimos, o degustamos através de toda variedade das condições e destinações, aí compreendidas a humana certamente. Mas os animais, por exemplo, não fabricam carma, é suficiente para eles experimentá-lo. A escolástica hindu distinguirá, dentro desta ótica, o potencial cármico precedentemente acumulado (samcita-karma), o carma em curso de consumação na encarnação presente (prarabdha-karma), aquele que se elabora atualmente e que portará frutos em uma outra vida (agami-karma). Estas são as três facetas do curso das coisas, onde temporalidade e causalidade formam uma coisa só.

O que se passa entre morte e renascimento, na passagem de uma existência a outra?

Contrariamente a maioria das escolas budistas que postulam o renascimento instantâneo, a escatologia hindu estabelece uma existência intermediária (antara-bhava). Durante essa o ser encontra-se reduzido ao estado de corpo sutil (sukshma-sarira ou linga-sarira), no qual se encontram inscritos, como engramas, os resíduos dinâmicos (samskara) de seus atos passados. Estes resíduos o inclinam naturalmente a dirigir para uma matriz tal que eles possam mais ou menos se repetir em um novo gênero de vida. O corpo sutil faz por conseguinte função de corpo veicular (ativahika-srira). Sobre essas questões e principalmente sobre esta relação, inesperada para nós, entre embriologia e soteriologia, o Garbhopanishad (“Upanixade do embrião”) é altamente instrutivo.

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