Se eu pegar uma pedra
ou um torrão de terra
e olhar para ele,
posso ver o que está acima e o que está abaixo,
Posso até ver o mundo inteiro…Mysterium Magnum, II, 6.
Quod est inferius, est sicut quod est superius. Essa máxima, extraída aqui de A Tábua de Esmeralda1, nunca deixou de iluminar todos aqueles que, em sua busca pelo absoluto, poderiam ter atribuído a si mesmos essas linhas de Hadewijch:
Às vezes humilhado, às vezes exaltado,
oculto agora, manifesto logo,
para ser um dia preenchido pelo amor,
deve-se arriscar muitas aventuras
antes de chegar
ao ponto onde se saboreia
a pura essência do Amor2.
A verdade dessa máxima foi incorporada por um dos mais cativantes aventureiros místicos, o sapateiro Jacob Boehme. Como se seu destino tivesse se espelhado em parte no do patriarca Enoque, que, antes de ser levado e colocado por Deus, sob o nome de Metatron, entre os seres angélicos, tinha sido, segundo os hassidim alemães da Idade Média, também um sapateiro: “Em cada ponto do furador, ele (Enoque) não juntava o couro de cima com o de baixo, mas tudo o que estava em cima com o que estava embaixo …”.
Nota: G. G. Scholem, La Kabbale et sa symbolique, traduzido do alemão por Jean Boesse, Paris, Payot, 1966, p. 151. Um pouco mais adiante, Scholem escreve: “É notável observar que há uma lenda correspondente em um texto tântrico indo-tibetano, os ‘Contos dos 84 Mágicos’, onde (…) o Guru Camara (que significa sapateiro) recebeu instruções de um iogue sobre o couro, o furador, os fios e o sapato como um fruto criado dentro de si mesmo, sobre o qual ele meditou por doze anos, noite e dia, acima de seu trabalho como sapateiro, até atingir a iluminação perfeita e ser levado para o alto. Gustav Meyrink se inspirou na lenda de Enoque para criar o personagem do sapateiro Klinkherbogk (Le Visage Vert, traduzido do alemão por A. D. Sampieri, Paris, La Colombe, 1964). Quanto a Boehme, ele dedicou algumas belas páginas a Enoque em Mysterium Magnum (XXX, 26-31 e 44-54; XLIII, 26). Além disso, em A Condessa de Rudolstadt, Gottlieb, o cativante sapateiro incapaz de terminar um único sapato, tem apenas um mestre depois de Deus: Boehme, cujo livro ele possui, provavelmente Aurora. “Gottlieb ME explicou suas ideias religiosas. Elas ME pareceram muito bonitas, embora muitas vezes bizarras, e eu quis ler sua teologia de Boehme, já que ele é definitivamente um boehmista, para descobrir o que acrescentou por conta própria às reflexões entusiasmadas do ilustre sapateiro. Ele ME emprestou esse precioso livro, e eu mergulhei nele por minha conta e risco. Agora entendo como essa leitura perturbou uma mente simples, que levou ao pé da letra os símbolos de um místico que também era um pouco louco. Não tenho a pretensão de entendê-los ou explicá-los bem, mas parece que vejo neles um raio de alta adivinhação religiosa e a inspiração de uma poesia generosa”. (George Sand, Consuelo. La Comtesse de Rudolstadt, textes établis, présentés et annotés par Léon Cellier et Léon Guichard, t. III, Paris, Garnier, 1959″ PP– 237-238). Por fim, Pierre Cheltchitsky, o principal fundador da Unité des frères bohèmes, era sapateiro. Seus escritos (Filet de la vraie Foi, Discours sur la passion de Jésus d’après l’apôtre Jean, la Bète de l’Apocalypse, les Bandes bohèmes, etc.) transmitem muitos dos mesmos temas de Boehme.
Tabula Smaragdina de Alchemia, Hermetis Trismeg. in Alchemia, Norimbergae (Nuremberg) apud Ioh. Petreium, 1541, p. 363. Em sua forma atual ou com pequenas variações, essa máxima é frequentemente encontrada em escritos espirituais em geral e em textos alquímicos em particular. Assim, no “Psalter of Hermophilus”: “O que está acima é semelhante ao que está abaixo”. (Em Traités de la Transmutation des Métaux, ms. anon. du xvme siècle, strophe XXV; citado por Claude d’Ygé, Nouvelle Assemblée des Philosophes chymiques, Paris, Dervv, 1954, p. 54). Sobre esse tema, veja em particular: G. R. Monod-Herzen, L’Alchimie méditerranéenne, Paris, Adyar, 1963, 214 p.; J. Evola, La Tradition hermétique, Paris, Editions Traditionnelles, 1963, PP. 35 e segs.; R. Guénon, “Les Symboles de l’analogie”, em Symboles fondamentaux de la Science sacrée, Paris, Gallimard, 1962, PP. 319 e segs. ↩
Poèmes spirituels, em Ecrits mystiques des Béguines, traduzido do holandês médio pelo Pe. J.-B., Paris, Le Seuil, 1954, p. 68. ↩