Krishnamurti — Pensamento sem linguagem
Conhecemos a morte, assim como o medo extraordinário que ela nos provoca. O fato é que morremos, quer a idéia nos agrade ou não. Então, racionalizamos a morte ou fugimos para as crendices, para o carma, a reencarnação, ressurreição e outras coisas que só podem alimentar nosso medo durante a nossa fuga. E a questão é saber se estamos dispostos a ir até o fim e ver se é possível ser completamente livres da dor. Não no futuro, mas agora, neste instante. Cada um de nós pode ver a realidade cara a cara, de uma maneira inteligente e sã? Posso ver-ME diante do meu filho morto (ou meu irmão, minha irmã, seu marido, minha mulher, um amigo) e saber que estou sozinho? Posso ver minha solidão e não arranjar explicações para ela, crenças e teorias? Posso ver qualquer fato? Ver que não tenho nenhum talento, que sou obtuso, pouco inteligente, que sofro minha solidão, e que minhas crenças, estruturas religiosas, valores espirituais, são apenas sistemas de proteção? Posso ver a realidade e não procurar caminhos e meios de fuga? Isto é possível? Creio que sim, contanto que não usemos a noção do tempo, a idéia de um amanhã. Nossos espíritos são preguiçosos e por isso precisamos de tempo: tempo para vencer nossa dor ou para adquirir qualidades. O tempo não destrói a dor; ele pode fazer com que esqueçamos um sofrimento particular, mas a dor sempre estará lá, no mais profundo. Penso que é possível varrer a dor totalmente. Não amanhã, com o correr do tempo, mas vendo a realidade no presente. Além do mais, por que deveríamos sofrer? O sofrimento é uma doença. Nós vamos ao médico para que ele nos livre das nossas doenças. Mas por que nos vimos obrigados a suportar uma aflição, qualquer que seja? Eu não falo teoricamente. Isto seria muito superficial. Por que deveríamos permanecer num estado psíquico doloroso se podemos nos livrar completamente da dor? Esta pergunta torna a nos inquirir: Por que devemos viver em estado de conflito? Porque a dor é um estado de conflito. Pensa-se que este estado de contradição é necessário, que ele faz parte da vida, que na natureza e em toda parte em volta de nós esta luta existe. Aceita-se, portanto, este estado como sendo inevitável, no mundo e em nós mesmos. Da minha parte acho que nenhum conflito é necessário. Vocês podem ME dizer: “esta idéia bizarra é totalmente pessoal: você é sozinho, não é casado e talvez seja fácil para você viver sem conflitos. Mas nós devemos lutar contra nossos vizinhos, lutar em nosso trabalho e tudo o que tocamos gera oposição”.
Acredito que aqui cabe uma questão de educação. Aquela que nos deram é defeituosa. Fomos treinados a pensar em termos de competição e de comparações. Eu ME pergunto: é possível compreender ou ver qualquer coisa por meio da comparação? Não vemos claramente só depois que cessou toda comparação? É evidente que não se pode ver claramente enquanto se é ambicioso, quando se tenta ser ou tornar-se alguma coisa. Não quero dizer que é preciso estarmos satisfeitos com aquilo que somos, mas que se pode viver sem ficar fazendo comparações com os outros, e sem comparar aquilo que é com o que deveria ser. Ver sempre aquilo que é elimina toda avaliação comparativa e, penso eu, pode por conseqüência eliminar a dor. Acredito ser muito importante que o espírito se livre da dor, porque assim a vida adquire um significado totalmente novo.
O que é mau é a procura que se faz de conforto, não somente físico, mas também psicológico. Queremos nos refugiar numa idéia, e quando ela vai à falência ficamos desesperados, aparecendo aí uma nova dor. O problema então é este: “o espírito pode viver, funcionar, sem abrigos psíquicos, sem refúgios?” E possível vivermos o dia a dia sem procurarmos uma fuga? Enfrentar aquilo que é a cada minuto? Penso que então descobriríamos o fim da dor e a simplicidade do espírito, tornando-o claro, capaz de percepção direta, sem palavras, sem símbolos.
Não sei se já pensaram algum dia nas palavras. Existe algum pensamento sem linguagem? Ou todo pensamento são unicamente palavras, símbolos e imaginação? Acho que todas as palavras, todos os símbolos, todas as idéias, são prejudiciais à clareza da visão. Para se chegar até o final da dor e saber se é possível ser livre imediatamente, viver cada dia liberto da dor, deve-se penetrar profundamente em si mesmo e livrar-se de todas essas explicações, palavras, idéias, crenças, de maneira que o espírito fique realmente puro e capaz de ver aquilo que é.