O ABUTRE real, devorador de entranhas, é um símbolo de morte entre os maias. Mas, por alimentar-se de corpos em decomposição e de imundícies, também pode ser considerado um agente regenerador das forças vitais contidas na decomposição orgânica e em resíduos de todo tipo, ou seja, um purificador, um mago que garante o ciclo da renovação, transmutando a morte em nova vida. É o que explica o fato de que, no simbolismo cosmológico, ele também esteja associado aos signos de água, como é o caso do calendário maia, e de que governe as preciosas tempestades da estação seca, assegurando, assim, a renovação da vegetação e, por Isso, tornando-se uma divindade da abundância. São encontrados em grande número, rígidos e escuros, nas ilhas lodosas dos grandes rios, como o Mekong, em frente às cidades e aldeias.
Essas mesmas razões também o associam ao fogo celeste, ao mesmo tempo purificador e fecundante. Em inúmeros ritos indígenas da América do Sul, ele é o primeiro a possuir o fogo, que lhe é roubado por um demiurgo, em geral com o auxílio do sapo. Na Africa negra, entre os bambaras, este mesmo simbolismo é levado às últimas consequências, no plano místico, com a classe dos iniciados ABUTRE. O ABUTRE do Koré é o iniciado, morto para a vida profana, e que acaba de penetrar na sabedoria divina, purificado, queimado pelas provas iniciáticas. Nas saídas da confraria, aparece como um palhaço, e principalmente como uma criança, pois de fato acaba de nascer, ou melhor, de renascer, mas no domínio transcendental de Deus, cuja sabedoria, aos olhos dos profanos, se reveste com aspecto da loucura e da inocência. E, como uma criança, ele se arrasta pelo chão e devora tudo o que encontra, até mesmo os seus próprios excrementos: triunfou sobre a morte terrestre e tem o poder de transmutar a podridão em ouro filosofal. Diz-se que é o mais rico dos seres, pois só ele conhece o ouro verdadeiro. É celebrado numa oração que diz que se a parte de cima e de baixo do alimento forem iguais, é a verdade. Por fim, na analogia estabelecida entre as classes de iniciados e os graus da hierarquia social, ele corresponde à eterna parturiente. É portanto também, na Africa como na América, um símbolo de fertilidade e de abundância, em todos os planos da riqueza: vital, material e espiritual.
Em Lembrança de infância de Leonardo da Vinci. Sigmund Freud tez do ABUTRE uma metamorfose da mãe. A deusa-ABUTRE egípcia, Nekhbet, era, segundo as crenças populares, a protetora dos nascimentos.
O ABUTRE é por vezes identificado com Isis, nos Textos das Pirâmides. As palavras misteriosas de fsis, que conferem a vida, devem ser conhecidas pelos defuntos. A posse da oração do ABUTRE te será benéfica na região dos mil campos. É na noite, nas trevas, na morte, que a deusa-ABUTRE reanima a alma, que ressuscitará na madrugada: O ABUTRE (a mãe) concebeu na noite, em teu chifre, oh, vaca prenhe (texto explicado no verbete Isis). O ABUTRE também é representado em cima de uma cesta, simbolizando, assim, a germinação na matriz.
Muitas vezes, na arte egípcia, o ABUTRE representa o poder das Mães celestes. Absorve os cadáveres e novamente dá a vida, simbolizando o ciclo da morte e da vida numa perpétua transmutação.
Um admirável relevo deísis orna o templo de File, representando a deusa sentada em seu trono, de perfil, com a cabeça envolta, como um elmo, pelas asas caídas de um grande pássaro, de onde distingue-se a cabeça e o rabo de ABUTRE; o elmo é encimado por um globo lunar enquadrado, como uma lira, entre dois chifres de vaca; a deusa, de peito nu, oferece um seio intumescido, como no aleitamento: um acúmulo raro de símbolos femininos, personificação do processo biológico no universo, uma das mais belas imagens do eterno feminino.
Nas tradições greco-romanas, o ABUTRE é, ainda, um pássaro adivinhatório. Era um dos pássaros consagrados a Apolo, porque seu voo, como o do cisne, o do milhano e o do corvo, oferece pista a presságios. Remo vê seis ABUTREs e Rómulo, doze, quando, um no Palatino e o outro no Aventino, interrogam o céu para saber onde construir a cidade: Roma será edificada no local em que os presságios se revelarem mais favoráveis. (DS)
Grego: Aetos. No Novo Testamento, é difícil saber se o termo refere-se à águia ou ao ABUTRE, e, neste segundo caso, a qual espécie se refere (“quebra-ossos”, “cinzento” e “abanto”). A referência em Mt 24,28 e Lc 17,37 é de difícil interpretação. Enquanto para alguns autores se trataria de uma menção às águias das insígnias romanas, para outros seria um provérbio equivalente ao nosso “Onde há fumaça, há fogo”. Neste último caso, Jesus estaria afirmando que o conjunto de sinais indicados por ele bastaria para saber que falava sobre o cumprimento da profecia. (DJE)