carne

As significações da palavra carne evoluíram, ao longo dos tempos, no sentido de uma interiorização crescente. A carne é muitas vezes representada pelas Imagens de um São Jerônimo a dilacerar a própria pele com uma pedra, ou pela tentação de Santo Antônio: aparece como uma força diabólica que habita no corpo do homem, o diabo no corpo.

No Antigo Testamento, em contraposição ao espírito, a carne é representada em tua fragilidade com seu caráter transitório; a humanidade é carne e é o divino espírito (pneuma). No Novo Testamento, a carne é associada ao sangue para designar a natureza humana do Cristo e do homem; o antagonismo entre a carne e o espírito exprime o abismo entre a natureza e a graça (João, 6, 23). Não apenas a carne é incapaz de abrir-se aos valores espirituais, como também inclina-se ao pecado. São Paulo mostra o carnal escravizado ao pecado; abandonar-se à carne significa não somente tornar-se passivo, como também introduzir em si mesmo um gérmen de corrupção. O homem encontra-se dilacerado entre a carne e o espírito, despedaçado pela dupla tendência que o anima: de um lado, o desejo sincero de acertar, e de outro, uma vontade ineficaz (Romanos, 7, 14; 8, 8; Gálatas, 5, 13; 6, 8). Com São Paulo, afastamo-nos da tradição judaica, pois como a terminologia modificou-se, os termos já não têm o mesmo conteúdo, e a carne passa a possuir doravante um sentido moral que não lhe era implícito anteriormente; já não se trata somente do corpo ou da humanidade, mas da natureza humana que perdeu sua retidão por causa do pecado original. A carne arrasta para baixo, e disso resulta a necessidade constante de lutar contra as desordens que ela não cessa de produzir.

A doutrina de São Paulo atrairia a atenção dos Padres da Igreja que, segundo a violência ou a moderação de seus respectivos temperamentos, ampliariam o pensamento do apóstolo ou o comentariam comedidamente; ao primeiro grupo pertencem Jerônimo e Tertuliano, ao segundo, Ambrósio e Agostinho. Assim, a carne é considerada como o adversário do espírito, e por isso será julgada como inimigo, um animal indômito e Indomável, constantemente revoltado. Ao desejar exprimir o peso da carne, São Gregório de Nazianzo compara-a a uma massa de chumbo; segundo Ambrósio, Deus não habita nos carnais, e aqueles que se desligam da carne tornam-se comparáveis aos anjos que ignoram as tribulações e a servidão da carne; preservados de pensamentos mundanos, eles pertencem inteiramente às realidades divinas.

O gnosticismo, o montanismo e os maniqueístas haviam exagerado as oposições entre a carne e o espírito; certos Padres da Igreja, justamente ao combater esses diversos movimentos, não escapariam entretanto às tendências que desejavam refutar. As doutrinas estoicas, principalmente, exerceriam profunda influência sobre as oposições denunciadas entre a carne e o espírito.

Os monges do séc. XII extrairiam desta herança seus mais acerbos epítetos; leitores assíduos de Cassiano, através dele reencontrariam elementos surgidos do estoicismo e do neoplatonismo, e poderiam meditar sobre a força e os delitos da carne entregue ao seu próprio peso negativo. As narrativas dos Padres do Deserto, os consuetudines monasticae, as obras dos grandes reformadores seriam para eles documentos adicionais que lhes mostravam os exemplos a seguir e os desempenhos a imitar na ordem ascética. Sua ascese teria por finalidade a de conquistar a liberdade que provém da graça e do espírito a serviço de Deus, e cujo resultado era um enfraquecimento da carne e de suas exigências. Daí a importância que se dava à virgindade que, desde os primeiros séculos cristãos, havia adquirido um nível de excelência, colocando-se imediatamente após o martírio e, aliás, considerada como substituta deste.

Numerosos vícios decorrem da carne, no sentido a que se referiu São João, ao mencionar a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e o orgulho das riquezas (1 João, 2, 16); e isso porque a ela estão associados o demônio e a vida mundana.

Segundo Guillaume de Saint-Thierry, a carne deve ser tratada com sobriedade, pois seus desejos imoderados são opostos às intenções do espírito. Todavia, a carne refloresce quando o espírito se reforma à imagem de Deus; por vezes ela se adianta ao espírito que a guia, deleita-se naquilo que alimenta o espírito, e sua submissão torna-se natural. O homem que é espiritual, e que faz uso de seu corpo de um modo espiritual, merece ver a submissão de sua carne tornar-se natural e espontânea (DAVS, 44, 82, 264).

Para Bernardo de Clairvaux, a carne é o primeiro inimigo da alma; corrompida desde seu nascimento, manifesta-se viciada por seus maus hábitos e obscurece a visão interior. Bernardo costumava pedir a seus noviços que deixassem o corpo à porta do mosteiro, pois somente o espírito é admitido no interior dos claustros. Até quando a carne miserável, insensata, cega, demente e absolutamente desvairada procurará encontrar consolações passageiras e caducas? lemos em seu 6.” sermão sobre o Advento (BF.RA, 2, 172). Entretanto, a carne pode vir a tornar-se uma fiel companheira do espírito. Mas, no pensamento cristão, ela não cessa de provocar a desconfiança. O humanismo apenas atenuaria essa desconfiança, ao tender a baixar as barreiras que separam a carne do espírito, e ao insistir sobre a unidade indissolúvel da natureza humana.

Se, para Hildebert de Lavardin, a carne é uma lama pegajosa, é evidente que livrar-se dessa lama exige um dinamismo do qual poucos homens se mostrariam capazes; a prece, a humildade, a compunção, a nostalgia do reino de Deus são alguns coadjuvantes para a aquisição da paz de coração que resulta de um perfeito domínio da carne. Pouco a pouco, esta se vai sacralizando e participa da luz do espírito. Assim, a alma tem uma prelibação da beatitude celeste, ao mesmo tempo em que prossegue sua peregrinação terrestre. Pois a carne não comporta somente cores noturnas, herdadas do dualismo platônico e exacerbadas no maniqueísmo. A carne assume também um valor de intimidade, não apenas corporal, mas espiritual, intimidade que implica a totalidade do ser humano. Pode-se ser penetrado até mesmo na carne por um sentimento de amor ou de ódio; em linguagem vulgar, penetrado até as tripas. A carne designa, então, o princípio mais profundo da pessoa humana, a sede do coração, entendido no sentido de princípio e de ação. Dar-vos-ei um coração novo, porei no vosso Intimo um espirito novo, tirarei do vosso peito o coração de pedra e vos darei um coração de carne (Ezequiel, 36, 26). O cristianismo traz até mesmo uma promessa de “ressurreição da carne”, manifestando, assim, que é o homem total que retorna à vida. Por acaso o Cristo não é o Verbo feito carne? E isso leva Paul Valéry a dizer que nenhuma outra religião jamais exaltou tanto a carne. (DS)