As nossas informações são sensivelmente melhores a partir da dinastia dos CHANG (aprox. 1751-1028). Ela corresponde grosso modo à proto-história e ao começo da história antiga da China. A época dos CHANG apresenta como características a metalurgia do bronze, o aparecimento dos centros urbanos e das cidades-capitais, a presença de uma aristocracia militar, a instituição da realeza e os primórdios da escrita. No que se refere à vida religiosa, a documentação é extremamente farta. Dispomos, em primeiro lugar, de rica iconografia, ilustrada sobretudo pelos magníficos vasos rituais de bronze. Por outro lado, os túmulos reais informam-nos sobre certas práticas religiosas. Mas são principalmente as inúmeras inscrições oraculares, gravadas em ossos de animais e em carapaças de tartarugas, que constituem uma fonte preciosa. Finalmente, algumas obras posteriores (O Livro das Odes, por exemplo), a que Karlgren chama “free Chou texts”, contêm muitos materiais antigos. Acrescentemos, porém, que essas fontes apenas nos esclarecem sobre certos aspectos da religião dos CHANG, em primeiro lugar sobre as crenças e rituais do clã real; tal como acontecia com a época neolítica, a mitologia e a teologia permanecem em grande parte desconhecidas.
A interpretação dos documentos iconográficos nem sempre é certa. Concorda-se em reconhecer certa analogia com os motivos atestados na cerâmica pintada de Yang-chao, e, ademais, com o simbolismo religioso das épocas posteriores. Hentze (ibid., PP. 215 s.) interpreta a conjunção dos símbolos polares como ilustrando ideias religiosas relacionadas com a renovação do Tempo e a regeneração espiritual. Igualmente importante é o simbolismo da cigarra e da máscara t’ao-tieh, que sugere o ciclo de nascimentos e renascimentos: a luz e a vida emergindo das trevas e da morte. Também notável é a união das imagens antagônicas (serpentes de penas, serpente e águia etc), ou, em outras palavras, a dialética dos contrários e a coincidentia oppositorwm, tema central para os filósofos e místicos taoístas. Os vasos de bronze representam urnas-casas. As suas formas derivam quer da cerâmica, quer de protótipos de madeira. A admirável arte animalista revelada pelos vasos de bronze teve por modelo, muito provavelmente, gravuras insculpidas em madeira.
As inscrições oraculares revelam-nos uma concepção religiosa ausente (ou inapreensível?) nos documentos do Neolítico, especialmente a preeminência do deus supremo celeste, Ti (Senhor) ou CHANG-ti (O Senhor do Alto). Ti comanda os ritmos cósmicos e os fenômenos naturais (chuva, vento, seca etc), concede a vitória ao rei e assegura a fartura das colheitas, ou, ao contrário, provoca os desastres e envia as doenças e a morte. Prestam-lhe duas espécies de sacrifícios: no santuário dos antepassados e ao ar livre. Mas, como acontece com outros deuses celestes arcaicos (cf. o nosso Traite d’Histoire des Religions, §§ 14 s.), o seu culto deixa transparecer certo declínio da primazia religiosa. Ti mostra-se distante e menos ativo que os antepassados da estirpe real, diminuindo o número de sacrifícios que lhe são oferecidos. Mas só ele é invocado quando se trata da fecundidade (a chuva) e da guerra, as duas principais preocupações do soberano.
Seja como for, a posição de Ti continua a ser suprema. Todos os outros deuses, assim como os antepassados reais, lhe são subordinados. Somente os antepassados do rei têm a capacidade de interceder junto a esse deus; por outro lado, só o rei pode comunicar-se com os seus antepassados, pois o rei é “o homem sem par”. O soberano fortalece a sua autoridade com a ajuda dos antepassados; a crença no poder mágico-religioso desses antepassados legitimava o domínio da Dinastia CHANG. Os antepassados, por seu turno, dependem das oferendas de cereais e do sangue e carne das vítimas que lhes são trazidas. É inútil supor, como pensam certos estudiosos, que, já que o culto dos antepassados era tão importante para a aristocracia reinante, passou a ser progressivamente adotado por todas as castas sociais. O culto já se achava bem implantado, e com grande popularidade, na época neolítica. Como acabamos de ver (p. 18), fazia parte integrante do sistema religioso (articulado em torno da noção do ciclo antropocósmico) dos mais antigos agricultores. Foi a preeminência do rei, cujo primeiro Antepassado se supunha descender de Ti, que conferiu função política a esse culto imemorial.
O rei oferece duas séries de sacrifícios: aos antepassados e a Ti e aos outros deuses. O serviço ritual estende-se, às vezes, por 300 ou 360 dias. A palavra “sacrifício” designa o “ano”, uma vez que o ciclo anual é concebido como um ofício completo. Isso vem confirmar a importância religiosa do calendário, que assegura o retorno anual das estações. Nos grandes túmulos reais perto de Anyang, encontraram-se, ao lado de esqueletos de animais, numerosas vítimas humanas, provavelmente imoladas para acompanhar o soberano em sua viagem ao outro mundo. A escolha das vítimas (companheiros e serviçais, cães, cavalos) sublinha a importância considerável da caça (caça ritual?) para a aristocracia militar e o clã real. Muitas das perguntas conservadas pelas inscrições oraculares referem-se à oportunidade e às possibilidades de êxito das expedições do rei.
Da mesma forma que as habitações, os túmulos compartiam o mesmo simbolismo cosmológico e desempenhavam a mesma função: representavam as casas dos mortos. Uma crença análoga poderia explicar o sacrifício humano quando da construção de edifícios, sobretudo templos e palácios. As almas das vítimas asseguravam a perenidade da construção; poder-se-ia dizer que o monumento que era erguido servia de “novo corpo” para a alma da vítima. Mas os sacrifícios humanos eram também efetuados com outros objetivos, a cujo respeito não dispomos de boas informações; pode-se supor que se visava à renovação do Tempo ou à regeneração da dinastia.
Em que pese às lacunas, é possível decifrar os traços gerais da religião na época dos CHANG. A importância do deus celeste e do culto dos antepassados é indiscutível. A complexidade do sistema sacrificai (solidário de um calendário religioso) e das técnicas divinatórias pressupõe a existência de uma classe de “especialistas do sagrado”, adivinhos, sacerdotes ou xamãs. Por fim, a iconografia revela-nos a estrutura de um simbolismo ao mesmo tempo cosmológico e soteriológico, ainda insuficientemente esclarecido, mas que parece antecipar as principais concepções religiosas da China clássica. (HCIR)