fibionitas

Uma vez de posse da gnosis, os pneumatikoi se consideram livres da condição humana, além das regras sociais, das interdições éticas – uma ideologia que encontra paralelos em outras partes do mundo, principalmente na Índia. Com efeito, a liberdade de que gozam os gnósticos de praticar o ascetismo ou adotar a desinibição sexual faz-nos lembrar dos rishis dos Upanixades e dos iogues tântricos. O caso paralelo mais surpreendente dos ritos sexuais xaiva e tântricos discutidos acima encontra-se na seita gnóstica dos fibionitas. Nossa principal fonte de informação é Epiphanius, que, quando jovem, frequentou as reuniões dos fibionitas e leu vários de seus livros básicos. Segundo Epiphanius, em suas reuniões, eles servem alimentação substanciosa, carne e vinho, mesmo se são pobres. Após terem se alimentado juntos e, pode-se dizer, carregado o seu sangue de energia, justamente por causa do excesso, eles partem para atividades sexuais. O homem, deixando sua esposa, diz a ela: “Levanta-te e faze amor com o nosso irmão” (“Realize o agape com o irmão”). Então, os infelizes unem-se entre si e sinto-ME envergonhado de contar os atos vexaminosos praticados por eles…, contudo, não ME envergonharei de falar sobre o que eles não têm vergonha de praticar, a fim de que eu possa suscitam de todos os modos possíveis, o horror daqueles que fiquem sabendo dessas práticas vexaminosos. Após a relação sexual, possuídos pela fornicação, eles dirigem sua blasfêmia em direção aos céus. A mulher e o homem tomam o fluido da emissão masculina em suas mãos, e, voltados para o céu e com as mãos sujas da impureza, rezam, da maneira como se chamou Stratiotikoi e Gnostikoi, levando ao Pai de Toda a Natureza aquilo que têm nas mãos. Então dizem: “Oferecemos a Vós o Corpo de Cristo”. E então comem-no, sua própria ignomínia, dizendo: “Esse é o corpo de Cristo e esse é o Cordeiro Pascal, por amor do qual nossos corpos sofrem e somos forçados a confessar o sofrimento de Cristo.” Da mesma forma também com a mulher: quando ela se encontra no fluxo menstrual, eles juntam o sangue da menstruação de sua impureza e comem-no juntos dizendo: “Esse é o corpo de Cristo”.

Tais ritos estranhos e ignominiosos refletiam a cosmologia e a teologia dos fibionitas. De acordo com elas, o Pai (ou Espírito Primordial) deu à luz Barbelo (também chamada Prounikos) que morava no oitavo céu. Barbeio teve como filho Ialdabaoth (ou Sabaoth), criador das regiões inferiores. Em consequência, tudo o que foi criado e vivia, em primeiro lugar, os Arcontes – que governavam o mundo inferior – retinha uma centelha do poder de Barbelo. Contudo, quando Barbeio ouviu Ialdabaoth dizer: “Eu sou o Senhor e não há outro além de mim, etc.” (Isa. 45:5), ela compreendeu que a criação do mundo havia sido um erro e chorou por isso. A fim de recuperar um pouco de seu antigo poder, “apareceu aos Arcontes sob a forma de uma formosa mulher, seduziu-os e, quando eles ejacularam, tomou o seu esperma, recuperando o poder originariamente pertencente a ela”. Dessa forma, a salvação foi desejada e realizada numa perspectiva cósmica. Os nicolaitanos já proclamavam: “Reunimos a dynamis de Prounikos existente em nosso corpo por meio dos fluidos da potência geradora (gone) e do sangue menstrual (Panarion 25.3.2)”. Os fibionitas iam mais longe: consideravam que a psyche era o poder encontrado na menstruação e no esperma, os quais deveriam ser colhidos e comidos. Acreditavam que, ao ingerirmos um alimento, fosse carne, vegetais, pão ou qualquer outra coisa, prestamos um favor às criaturas, porque estamos reunindo a psyche de todas as coisas. (… ) e eles dizem que a própria psyche é um princípio existente e disperso nas feras, peixes, cobras, homens. vegetais, árvores e em tudo que é criado. ( Panarion. 26.9.3-4. )

Por esse motivo, a criação é não só um erro, mas também um crime, uma vez que divide novamente a psyche e prolonga sua permanência no mundo.

Pode-se dizer que o objetivo final dos rituais sexuais fibionitas era, por um lado, acelerara reintegração do estágio pré-cosmogônico, ou seja, “o fim do mundo”, e, por outro lado, promover o contato com Deus, através de uma “espermatização” progressiva. Com efeito, o esperma não só é comido sacramentalmente, mas, de acordo com Epiphanius, ao se deixarem arrebatar (entrar em êxtase?) no curso de suas cerimônias, eles espalham sua própria ejaculação pelo corpo e pedem que, através dessa prática, possam ter acesso livre a Deus.

Conforme salientou Leisegang, a justificativa teológica dessa crença poderia ser dada pela Primeira Epístola de João (3:9): “Ninguém nascido de Deus comete pecado; porque o esperma de Deus permanece nele e ele não pode pecar porque nasceu de Deus”. Além disso, de acordo com a doutrina estoica do logos spermatikos, compreendido como um pneuma incandescente, o sêmen humano contém um pneuma graças ao qual a alma se forma no embrião. Essa teoria estoica tem sua origem na afirmação de Alcmaeon de Crotona, segundo a qual no cérebro está a origem do sêmen,88 ou seja, no mesmo órgão em que se supunha estar a alma, psyche.

Como observa Onians, para Platão a psyche é “sêmen”, sperma (Timaeus 73 c).. “ou melhor, está no ‘sêmen’ (91 a), e este ‘sêmen’ está contido no crânio e na espinha (p. 73 ss.). … Respira através do órgão genital (91 b). … Que o sêmen era a própria respiração ou tinha respiração (pneuma), e que a procriação em si era um ato de respiração ou sopro está bem explícito em Aristóteles”.89

Com referência aos fibionitas, não temos ainda informação suficiente sobre seus rituais e crenças que nos permita fazer uma comparação adequada com o maithuna tântrico evocado por Abhinavagupta e com a cerimônia xaiva do kundago laica. Todos esses sistemas parecem ter em comum a esperança de que a unidade espiritual dos primórdios possa ser reconstituída através do êxtase erótico e do consumo do sêmen e do mênstruo. Em todos os três sistemas, as secreções genitais representam as duas modalidades divinas de ser, o deus e a deusa; em consequência, o consumo ritual dessas secreções aumenta e acelera a santificação dos celebrantes. Contudo, em todas essas escolas, à série de homologias originais, divindade-espírito-luz-esperma mesclam-se outras concepções arcaicas e não menos importantes (por exemplo, a bi-unidade divina, com a sua importância religiosa implícita dada ao elemento feminino, a androginização espiritual do celebrante, etc.). (Eliade)