A função soteriológica do amor e da Mulher é claramente proclamada por um outro movimento, de aspecto essencialmente “literário”, mas que comportava uma gnose oculta e, provavelmente, uma estrutura iniciatória. Trata-se dos Fedeli d’Amore, cujos representantes são atestados no século XII tanto na Provença e na Itália como na França e na Bélgica. Os Fedeli d’Amore constituíam uma milícia secreta e espiritual, que tinha por fim o culto da “Mulher única” e a iniciação no mistério do “amor”. Todos os seus membros utilizavam uma “linguagem oculta” (parlar cruz), para que a sua doutrina não fosse acessível a “la gente grossa”, como afirma um dos mais ilustres dos Fedeli, Francesco da Barberino (1264-1348). Outro fedele d’amore, Jacques de Baisieux, prescreve em seu poema — C’est des fiez d’Amours — “que não se devem revelar os conselhos do Amor, e sim guardá-los com muito cuidado”. Que a iniciação pelo Amor fosse de ordem espiritual, afirma-o o próprio Jacques de Baisieux, interpretando o significado da palavra “Amor”:
A senefie en sa partie
Sans, et mor senefie mort;
Or l’assemblons, s’aurons sans mort”.
(A significa, por sua vez, Sem, e mor significa morte; Juntemo-las, e teremos sem morte.)
A “Mulher” simboliza o intelecto transcendente, a Sabedoria. O Amor a uma mulher acorda o adepto da letargia em que o mundo cristão havia mergulhado por causa da indignidade espiritual do Papa. Encontra-se efetivamente nos textos dos Fedeli d’Amore a alusão a uma “viúva que não é viúva”: é a Madonna Intelligenza, que permaneceu “viúva” porque seu esposo, o Papa, morreu para a vida espiritual ao se consagrar exclusivamente aos assuntos temporais.
Não se trata, propriamente, de um movimento herético, mas de um grupo que já não reconhecia aos papas o prestígio de chefes espirituais da cristandade. Nada se sabe sobre os seus ritos de iniciação, mas estes deviam existir, pois os Fedeli d’Amore formavam uma milícia e realizavam reuniões secretas.
De resto, desde o século XII os segredos e a arte de encobri-los impõem-se em meios muito diversos. “Os enamorados e as seitas religiosas têm a sua linguagem secreta, e os membros de pequenos círculos esotéricos dão-se a conhecer através de sinais e símbolos, cores e senhas.” As “linguagens secretas”, bem como a proliferação de personagens lendárias e enigmáticas e de aventuras prodigiosas, constituem em si mesmas fenômenos para-religiosos. Prova disso são os romances da Távola Redonda, elaborados, no século XII, em torno do rei Artur. As novas gerações educadas — direta ou indiretamente — por Eleonor da Aquitânia e por Marie de Champagne já não apreciavam as velhas Canções de Gesta. O lugar de Carlos Magno era agora ocupado pelo fabuloso rei Artur. A Matéria da Bretanha punha à disposição dos poetas uma série considerável de personagens e lendas em grande parte de origem céltica, mas suscetíveis de assimilar elementos heterogêneos — cristãos, gnósticos, islâmicos. (Eliade)