Francisco de Assis

Francisco de Assis, São (c. 1181-1226) Filho de um abastado comerciante de Assis, Francisco foi criado de modo a conhecer a diferença entre riqueza e pobreza e entre os padrões da cavalaria e os do escritório comercial. Mostrou pela primeira vez sua independência ao saborear a vida de cavaleiro e depois — após um longo período de indecisão e profunda reflexão — renunciar a todos os confortos materiais de seu lar para converter-se num pedinte: optou pela dura vida de pobreza, mitigada por uma cavalheiresca devoção à Senhora Pobreza, mas inspirado, mais verdadeiramente, pela interpretação literal da exortação de Jesus para renunciar a tudo e segui-Lo. No Testamento de Francisco, escrito no final de sua vida, ele descreveu as fases por meio das quais superou sua impertinência e orgulho naturais: assistindo aos leprosos, que até então o enchiam de repulsa; mostrando amor e reverência até ao mais humilde dos padres de paróquia; e acatando e interpretando literalmente a palavra de Deus. “Depois que o Senhor ME concedeu irmãos ninguém ME mostrou o que eu tinha que fazer, mas foi o Altíssimo quem ME revelou que eu devia viver de acordo com o modelo das Sagradas Escrituras.”

Depois de sua conversão em 1206, Francisco tornou-se um andarilho e um pedinte em Assis e suas circunvizinhanças: reparou a igreja de São Damiano e outras igrejas, prestou assistência a leprosos e auxiliou o clero da região. Em 1209, os discípulos começaram a se reunir à sua volta e em 1210 a Regra Primitiva foi redigida e levada ao papa. A mensagem de Francisco era intensamente pessoal, em sua própria opinião comunicada por Deus, espontânea e influenciada pelas palavras dos Evangelhos. Essa não é, entretanto, toda a verdade, pois não existem dúvidas de que ele foi inspirado por duas outras influências, uma obscura, a outra razoavelmente clara.

No vale de Spoleto, nos arredores de Assis, havia uma forte comunidade de heréticos cátaros, com um bispo próprio. Nos escritos de Francisco e nas primeiras Vidas, eles são virtualmente ignorados. Acreditavam eles que o mundo material era totalmente perverso e maligno; a visão que tinham do destino humano era sombria. Francisco pregou que o mundo era criação de Deus e bom — convocou os pássaros e, no Cântico do Irmão Sol de seus últimos anos, toda a criação para juntar-se a ele nos louvores ao Criador. Quando pregou aos pássaros mostrou sua profunda simpatia pelos animais; também ensinou aos que estavam com ele, com o discernimento inspirado de um professor nato, a adorar a Deus através de sua criação. Contestou assim a doutrina cátara de um modo muito direto e positivo. Até que ponto isso se deve a ter meditado seriamente sobre a mensagem cátara está longe de ser esclarecido.

Mais evidente é a influência de grupos e comunidades semelhantes à dele já existentes. Tinham-se inspirado na busca de vida apostólica, em imitação aos primeiros discípulos de Jesus; no sentimento de que a pobreza era parte da convocação para o serviço de Deus, assim como parte da face mais dura e sofrida do mundo; no impulso irrefreável para formar comunidades de pregadores evangélicos que realizassem o trabalho pastoral que muitos consideravam estar sendo negligenciado pelo clero paroquial. Essas ideias faziam parte do ar que um homem sensível da idade de Francisco devia respirar. Tampouco era ele o primeiro a solicitar a Inocêncio III que desse sua aprovação. Não é fácil determinar onde reside a originalidade de Francisco; havia, porém, a marca de uma personalidade e de uma inspiração muito individuais em tudo o que disse e fez, e o seu sucesso foi espetacular. Levou a recusa de propriedade a um ponto extremo e proibiu até seus discípulos de manusearem moedas; treinou pregadores mas esperava que a maioria de seus seguidores fossem leigos provenientes do povo comum, ensinando pelo exemplo e merecendo o respeito e as esmolas pelo trabalho árduo; dava ênfase particular ao respeito pelo clero; e estabeleceu um relacionamento especial com o papa através de cardeais escolhidos, sobretudo com Ugolino, o futuro papa Gregório IX.

Nesse meio tempo, a Ordem cresceu. De uma dúzia de membros em 1210, aumentou para centenas, talvez milhares, e espalhou-se por toda a face da Cristandade; Francisco tentou levá-la ainda mais além, até a corte do sultão do Egito. Em 1212 deu a tonsura a Santa Clara, que veio a ser a fundadora da Ordem Segunda — a das Clarissas Pobres. No final da década de 1210, foram tomadas medidas para formar missões e províncias na França, Alemanha e Espanha, e em 1244 os franciscanos chegaram à Inglaterra.

Francisco tinha pouca na organização — ou em sua capacidade de organização. Em certa medida, a Ordem foi estabelecida a despeito dele, e os esforços para definir uma hierarquia e um status dentro dela, para prescrever um ascetismo ritual em vez de sua prática mais individual, e para abrandar suas medidas extremas de pobreza, causavam-lhe evidente consternação. Contudo, tinha a mais sólida na Regra e num certo número de princípios centrais que definiram a vida e a natureza do “frade”. A Regra Primitiva tinha recebido aprovação verbal de Inocêncio III em 1210, mas em 1215 o Quarto Concílio de Latrão tentou, segundo parece, refrear a generosidade do papa Inocêncio para com os grupos informais de religiosos (que tinham provado ser, em algumas regiões da França e da Itália, sobretudo, as pontas-de-lança do inconformismo) proibindo novas Regras. Francisco sustentou inabalavelmente que sua Regra não devia ser afetada, uma vez que tinha sido aprovada, se bem que apenas de viva voz; e, após uma longa pausa e muitas revisões, sua forma final foi consagrada na bula papal de Honório III (1223), que ainda pode ser vista no tesouro da basílica de São Francisco em Assis.

Os últimos anos de vida de Francisco foram toldados pela doença, mas a eles pertencem muitas das histórias mais características de seu heroísmo e ensino, reunidas pelo Irmão Leone e outros fiéis companheiros. Faleceu na noite de 3 de outubro de 1226 e, com grande rapidez, seu amigo, o papa Gregório IX, canonizou-o (1228), enquanto seu discípulo, o Irmão Elias, edificava a bela igreja que ainda abriga o corpo de São Francisco. Esse monumento pode ser visto como uma brilhante expressão do paradoxo de sua vida, a dedicação da riqueza e da criação artística ao apóstolo da pobreza — ou como uma simples negação de seus ideais. Na mesma ordem de ideias, o crescimento de sua Ordem foi considerado a apoteose de seus ideais e seu abandono; em seu destino, tal como em sua vida, Francisco seguiu o mesmo padrão de seu Criador. (DIM)


Francisco de Assis (1181-1227)

Francesco Bernardone nasceu em Assis. Na ausência do pai, sua mãe o batizou com o nome de João Batista. Não sabemos quando nem por que o nome de Francisco, em desuso naquele tempo, substituiu o de João. Tampouco temos sua autobiografia, e seus irmãos, muito cedo divididos, interpretaram suas palavras e seus escritos em sentidos diferentes. Não é fácil descobrir o verdadeiro São Francisco.

“É paradoxal que o simples, o aberto, o tantas vezes comentado São Francisco, oculte-se atrás de um dos enigmas mais confusos da historiografia. A primeira dificuldade vem dos seus escritos. O santo, em sua humildade, não fez sua própria biografia. Não se pode esperar de sua obra nenhuma informação precisa de sua vida. Não encontramos mais do que alusões a alguns de seus comportamentos, que ele comunica a seus irmãos como exemplo. Assim, no seu testamento, o mais autobiográfico de seus escritos, lembra que sempre tentou viver do trabalho de suas mãos, para que os irmãos fizessem o mesmo. Além do mais, pelo menos um de seus escritos mais importantes, a primeira Regra que escreveu em 1209 ou 1210, se perdeu. Perderam-se também suas cartas, assim como a maior parte de seus poemas (não conservamos mais do que aquele que é, provavelmente, sua obra de arte, o Cântico di Frate Sole).”

Mas a principal dificuldade para descobrir o verdadeiro São Francisco é a existência, ainda estando ele com vida, de duas tendências na ordem. Cada uma delas tentava ganhar o fundador e interpretar a seu modo suas palavras e seus escritos…” (Jacques Le Goff, 2.000 años de cristianismo, 3, 202s.). Apesar de tudo isso, ou talvez por isso, sua figura teve e continua tendo a capacidade de gerar espanto e produzir uma literatura e um pensamento como poucos personagens da história tiveram. Desde São Boaventura — que escreveu a vida oficial do santo ou Legenda Maior (1263) e Tomás de Celano que escreveu a Vita Prima e a Vita Secunda (1228-1244) e o Tratado dos milagres (1253), passando pela Legenda dos três companheiros, o Espelho da perfeição dos irmãos menores, a Legenda Antiqua, As bodas espirituais de São Francisco com a pobreza e Os fioretti — , a figura de São Francisco não deixou de apresentar perfis e aspectos novos.

Sua própria vida e obra é um milagre permanente. Representa a utopia cristã levada até as suas últimas consequências: reprodução viva de Cristo, pregação do seu Evangelho, amor e entrega aos outros, amor universal a todas as criaturas.

— “Depois que o Senhor ME concedeu irmãos, diz em seu Testamento, ninguém ME mostrou o que deveria fazer. Mas o Altíssimo em pessoa revelou-ME que eu deveria viver segundo o modelo do santo evangelho. Então mandei escrever um texto em poucas e simples palavras, e o Senhor Papa ME deu sua aprovação. Os que se aproximavam para compartilhar essa vida distribuíam aos pobres o quanto possuíam e contentavam-se com um avental remendado por dentro e por fora, com o cordão e calças. Éramos simples em tudo e submissos a todos… O Senhor revelou-ME esse cumprimento que deveríamos usar: ‘O Senhor vos dê a paz’”.

— “Altíssimo, onipotente, bom Senhor, teus sãos os louvores, a glória, a honra e toda bênção…

Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas, especialmente o irmão sol, o qual faz o dia e nos dá a luz… Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã lua e as estrelas…

Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã mãe terra…” (Cântico do irmão sol).

— São Francisco deixou-nos sua doutrina e seu exemplo. Legou-nos também o franciscanismo vivo nos frades menores, nas freiras clarissas e na ordem terceira dos leigos. Esse franciscanismo se renova na vida de instituições e de pessoas ao longo do tempo.

BIBLIOGRAFIA: Escritos e biografias de S. Francisco de Assis; crônicas e outros testemunhos do primeiro século fransciscano, Fr. Ildefonso Silveira e Orlando dos Reis (orgs), Petrópolis, 1993; San Francisco de Asis. Escritos. Biografias. Documentos de la época. Edição de J. A. Guerra (BAC); Escritos de santa Clara y documentos complementarios. Edição bilíngue por J. Omaecheverría (BAC); E. Gemelli, El franciscanismo. (Santidrián)