As páginas precedentes, determinando o ponto de partida de uma epistemologia tomista, resolviam já, em seu princípio, a questão do realismo. Desde que pela reflexão se toma consciência do que é o conhecimento, não se pode mais fazer abstração deste. Não será contudo inútil retornar a essa tomada de posição inicial a fim de melhor destacar-lhe todas as condições e pelo próprio fato de se aperceber mais nitidamente ainda do seu fundamento correto. Previamente, deveremos julgar certas tentativas destinadas a justificar, de um ponto de vista crítico, o realismo do conhecimento.
– Algumas tentativas feitas para reencontrar o real a partir do cogito.
Descartes abrira, com esta finalidade, duas vias sobre as quais não seremos demasiado surpreendidos de ver o neotomismo se lançar.
Lembremo-nos de início da maneira pela qual o autor das Meditações Metafísicas reencontrava, no termo de suas reflexões, esse mundo exterior do qual inicialmente se afastara. Se não estou seguro de que minhas ideias claras relativas ao mundo material não tenham sua origem em mim, posso afirmar a mesma coisa das minhas sensações? Estas implicam uma passividade que requer fora de mim uma potência ativa proporcionada; ora esta não poderia ser Deus, que então seria enganador; resta portanto que existem realidades corporais, causas necessárias de minhas sensações. Diversas adaptações deste argumento foram tentadas. A afirmação, na origem de nossas sensações, de uma causalidade exterior, não é certamente inexata; mas não é de modo algum recorrendo a esta causalidade que tomaremos consciência da objetividade das ditas sensações. Além disso, falseando completamente o mecanismo da percepção, este modo de proceder tem o inconveniente de ME levar a considerar a imagem como uma duplicação puramente subjetiva do real exterior, ao passo que o apreendo imediatamente. Enfim, do ponto de vista crítico, poder-se-ia contestar esta utilização transcendente, ainda não justificada, do princípio de causalidade. É preciso evidentemente renunciar a tomar este caminho.
De um outro ponto de vista, mas que se inspira ainda em Descartes, tentou-se reencontrar o realismo. Desta vez, se fundamenta sobre a certeza da percepção do eu. Não podemos, como o filósofo do Discurso, e após o próprio Santo Agostinho, assentar nossa certeza da existência de um mundo real sobre esta apercepção privilegiada e imediata do eu que nossa consciência reflexa atinge? Aqui, aparentemente, não há distância nem obstáculo entre o sujeito cognoscente e o objeto conhecido: estão ontologicamente no mesmo plano e, além do mais, são radicalmente idênticos um ao outro. Ali ainda é necessário formular as mais graves reservas a respeito das consequências sistemáticas que se pretendem tirar dessa apreensão, .concludente aliás no que concerne à existência do eu, do sujeito pensante. E desde logo haveria lugar para observar que esta apreensão do eu, mesmo se é reconhecida como imediata, não atinge a perfeição do conhecimento per essentiam que caracteriza a intelecção dos espíritos puros. E sobretudo importa lembrar que, nas condições de união com nosso corpo em que se encontra nossa inteligência, essa faculdade não tem por objeto próprio, direta e imediatamente alcançado, o mundo dos espíritos, mas sim o das coisas materiais. Isto que eu percebo, ou de um modo geral, estes objetos que ME circundam, são, tal é o reconhecimento básico que se impõe à inteligência. Começar pela apercepção do eu, não é tomar o conhecimento na sua fonte e é, além disso, se expor a estas dissociações entre o sensível e o inteligível que encontramos na origem de todo o movimento idealista. Seria necessário acrescentar, nos colocando em um ponto de vista superior, que o valor absoluto de nosso conhecimento não deve estar fundado em nenhuma apreensão particular do ser, mas sobre a significação realista da noção transcendente de ser, a qual envolve, como o sabemos, de modo implícito, todos os seres particulares, mas não se encontra monopolizada por nenhum deles
– Os elementos do juízo.
Procedemos agora de maneira positiva. Nosso inspirador principal aqui será o Pe. Roland-Cosselin, que, na parte construtiva de seu Essai, analisara com um excepcional rigor o ato de conhecer.
Trata-se de saber o mais clara e perfeitamente possível o que é conhecer. Não há outro meio evidentemente para se chegar aí senão examinando atentamente nossos diversos conhecimentos. Para não nos estender muito, suporemos adquirida esta primeira conclusão: o ato perfectivo do conhecimento, aquele em que, em particular, ele toma consciência de modo distinto de si mesmo, é o juízo. Desde agora, portanto, nossa indagação sobre a natureza do conhecimento se encontra centralizada sobre o juízo. Tomemos, para fixar nosso pensamento, um juízo qualquer: “esta cortina é azul”, e esforcemo-nos em discernir seus elementos constitutivos. Numa primeira abordagem somos surpreendidos pelo aspecto de unidade ou de ligação que apresenta. Tinha diante de mim duas noções, a de “cortina” e a de uma cair, o “azul”; afirmando “esta cortina é azul” eu unifico e ligo estas duas noções; reconhecendo sua conveniência, atribuo à segunda, a de “azul” à primeira, a de “cortina”: o juízo se oferece ao meu olhar como uma relação de atribuição. Mas um outro relacionamento, mais fundamental, em um certo sentido, ME parece compreendido no ato de pensamento que analiso. Digo que a atribuição que acabo de proceder é verdadeira. O que se deve entender com isto? Que esta atribuição é conforme a realidade; meu juízo ME parece verdadeiro porque parece estar em relação de adequação com o que é. Em um juízo tal qual este que examino, além da relação entre o sujeito e o predicado, existe, igualmente percebido, uma relação entre meu pensamento e o ser, relação constitutiva da verdade deste juízo. É fácil de se dar conta de que esta relação é um elemento essencial desse ato. Se, com efeito, suprimo esta relação, negando-a por exemplo: “não, esta cortina efetivamente não é azul”, meu primeiro juízo perde toda consistência: não há mais relação com o que é, e a relação que estabelecera entre o sujeito e o predicado se esfuma.
Seria fácil reconhecer que também outros juízos se prestam a decomposições semelhantes. Tal coisa é imediatamente evidente para todas as afirmações categóricas que implicam a cópula “é”. É também quase manifesto que, nas proposições com sujeito e verbo sem cópula aparente, “a neve cai”, por exemplo, só verdadeiramente penso na medida em que ME refiro ao que é. E se considerássemos as outras formas de juízo que o lógico distingue, como o juízo de relação, o juízo hipotético, observaríamos que, tanto nestes casos como no precedente, só afirmo por uma referência ao real. Podemos, pois, concluir com o Pe. Roland-Gosselin (Essai, p. 43) : “… a análise do juízo ME permite constatar que o objeto não está inteiramente determinado para o sujeito, e não pode ser afirmado por ele, senão na medida em que é pensado em relação com “o que é”. Sem esta relação o juízo é sem valor.”
Consideremos agora o aspecto subjetivo ou a atividade de conhecimento que está implicada no juízo. Se ME é perguntado o que faz com que eu afirme que “esta cortina é azul”? O que responderia? -“É porque vejo que é assim, ou que a cortina ME parece ser azul”. Julgo que vejo ou que isto ME aparece. E tomemos cuidado, pois esta aparição que condiciona meu pensamento não é necessariamente uma percepção dos sentidos; há um aparecer no princípio dos meus mais abstratos juízos. Se digo por exemplo “o todo é maior do que a parte”, é porque intelectualmente vejo que é assim. O aparecer ou, se quisermos, a evidência, é um elemento constitutivo de todo juízo. Assim, vemos o que convém pensar das filosofias que, à maneira kantiana, pretenderiam conduzir a operação do juízo a um ato de síntese pura. Em uma tal operação, certamente o espírito não está inativo, ele atribui positivamente o predicado ao sujeito; mas se o faz é porque se vê objetivamente determinado. Um juízo sem intuição, um juízo cego está totalmente fora de toda psicologia real.
Definitivamente, direi, portanto, que o juízo se manifestou a mim como um duplo relacionamento, apoiando-se finalmente sobre um valor de ser que ME aparece e sobre a evidência de uma certa relação com o ser: “todo juízo supõe na origem, pelo menos lógica, da atividade do sujeito, uma “evidência de ser”, e exige para ser plenamente determinado uma “evidência” do liame de atribuição, por meio da qual se exprime, com “aquilo que é” (Roland-Gosselin, Essai, p. 51).
– Significação realista do juízo.
O que é pois este ser, do qual ME parece suspensa toda minha atividade judicativa? Afastemos previamente as significações idealistas que poderiam ser dadas. Inicialmente, o ser ao qual se refere o juízo não é o ser, de alguma maneira subjetivo, que se encontra afirmado pela cópula: “esta cortina é azul”; a realidade a que ME dirijo e pela qual ME meço não é o “é” de minha proposição. O que é efetivamente posto por meu pensamento, não é outra coisa senão o ens verum, este “ser verdadeiro” distinguido por Aristóteles e Tomás de Aquino do ens simpliciter, o qual exprime a realidade da conformidade de minha inteligência ao ser objetivo. É em função deste próprio ser objetivo que julgo; e o ser da relação de verdade só tem sentido relativamente a ele. Não posso portanto dizer que, através de minha afirmação, sou eu quem pôs o ser, como uma forma proveniente do sujeito. Como também, este ser que mede meu pensamento não pode ser considerado como um puro objeto, cuja realidade seria o ser pensado. Quem não vê, de um lado, que a relação de objetividade não é, de modo algum, constitutiva do que ME aparece e, de outro lado, que o ser enquanto conhecido supõe ele mesmo o ser do qual não é senão um modo particular: a noção de ser ultrapassa na sua significação a de objeto e lhe é portanto anterior: o ser não é formalmente o que é conhecido ou o que é objeto de conhecimento.
Mas o que é então, em definitivo? Já o dissemos, ele é aquilo que é, esse complexo onde distinguimos estes dois aspectos de um “algo”, de uma essência, “que é” ou que é ordenada à existência. Esta última nos apareceu, por outro lado, como o elemento determinante último, como a atualidade última de nossa noção. Ora, o real não é nada mais do que aquilo que existe ou que se refere à existência. Dizer que o conhecimento é relativo ao que é ou que se reporta ao real, ou, portanto, que tem valor realista, é significar exatamente a mesma coisa. Esta consideração, tão decisiva quanto simples e imediata, resolve quanto a si o problema do realismo do conhecimento. Pelo fato de que, julgando, meço-ME ao que é, meu conhecimento tem, em princípio, uma dimensão realista. Conhecer, sei agora, é perceber o que é.
Importa observar, no término desta análise, que este real a que ME refiro e que afirmo nos meus juízos não possui sempre exatamente o mesmo valor. Há modalidades de ser diferentes. Se afirmo, por exemplo, que “o homem é um bípede”, coloco uma afirmação universal, possuindo evidentemente valor objetivo, mas cujo objeto não existe à maneira desta mesa que afirmo também existir. O “fim do mundo” igualmente ME aparece como algo, mas que será realizado somente no futuro. Em todos estes casos é efetivamente ao ser que termino por ME referir, mas segundo modalidades de realização que não são todas iguais. No seu realismo, meu pensamento respeita, portanto, o valor mesmo da realidade dos seus diferentes objetos. Uma análise detalhada de meu conhecimento será necessária, para que eu possa apreciar o valor realista de cada um de seus modos.
Conclusão — Ainda que devêssemos ter sido demasiado breves, cremos haver mostrado de modo suficiente em que base se funda o realismo de nosso conhecimento. Nem a análise da sensação pura, nem a afirmação do sujeito espiritual, conseguem assegurar convenientemente tal tese; só a reflexão sobre o juízo nos coloca aqui no verdadeiro caminho. Restaria, para esclarecer completamente esta questão do fundamento do realismo, examinar as provas que quisemos dar tomando como ponto de apoio os valores de ordem apetitiva: os imperativos da razão prática, a crença, ou ainda, a ação. Pode acontecer que os argumentos que se costumam escalonar, partindo-se destes elementos subjetivos, não sejam sempre desprovidos de valor. Mas é certo que não podem substituir essa tomada de consciência direta do realismo de nosso conhecimento especulativo que alcança, na sua verdadeira natureza, a relação fundamental do pensamento com o ser. O ponto de partida ao mesmo tempo da metafísica e da teoria do conhecimento não está na ação, mas nesta apreensão refletida do ser que se realiza no juízo. (Gardeil)