partes do discurso

Uma língua é composta de palavras exercendo diferentes funções que os antigos gramáticos chamavam “partes do discurso”. Tomando E. Cassirer como guia, tentaremos surpreender o aparecimento progressivo destas palavras, fora da nebulosa da frase e seguindo os passos de um antigo locutor. Constataremos até que ponto o caráter dessa progressão foi dominado pelos gestos do ego.

Como já havia dito Humboldt, os pronomes, sucedâneos dos nomes próprios e representativos de pessoas, foram os elementos mais precocemente isolados, o pronome possessivo sobretudo, que apareceu antes mesmo do pronome pessoal. A ideia do eu, como se constata na criança, só lentamente destacou-se de um conjunto, no qual sua pessoa permanece ainda ligada aos objetos familiares que necessariamente a circundam. Isso parece indicar que o sentido da propriedade, dependente do instinto de conservação, não é uma contribuição tardia de uma civilização avançada.

Toda conversação, ou toda mensagem, supõe a relação de três entidades, duas que dialogam a propósito de uma terceira, muda ou ausente. Não poderia haver outras, pois a terceira personifica o outro, como o coro antigo. É ele que não vai além de assistir ao drama, vago figurante que não está longe de passar apen?s por uma presença. A desigualdade que distingue essas três entidades, o eu, o tu e o ele, acha-se geometricamente marcada no espaço pela importância decrescente que o eu, reinando no centro da ação, atribui às pessoas e às coisas que dele se afastam. O tu permanece bastante próximo para ser considerado como um confidente a quem se pede conselho ou se dá uma ordem. Quanto àquele ele de que se fala, confunde-se ao longe na multidão, da qual não passa de um representante simbólico. É o Outro, como diria Platão.

A vocalização das letras iniciais trai os sentimentos do locutor e a importância de sua situação. O I agudo do francês “ici”, que o dono de um cão lhe ensina a compreender e respeitar, caracteriza o que está próximo, e é natural que ele finalize com a palavra moi. Pelo contrário, o A grave e redobrado do francês “là-bas” indica um afastamento no espaço assim como tempo, e até no interesse que lhe atribuímos.

Quanto às consoantes iniciais, M de mol associa-se a tudo o que é íntimo, centrípeto, como Mère, Maison, enquanto T e D associam-se às tendências centrífugas, a tudo o que é Triste, Timorato, Tardio (francês: Triste, Timoré, Tardif). Mais geralmente essas letras T e D são os ideogramas universais do outro. O pronome demonstrativo latino iste designa aquele do qual não se pronuncia o nome, a não ser com a mesma característica de desprezo e aborrecimento contida em “celui-là”, “cestuy-là”, que executa a ordem dada ao “toi”.

Com as três pessoas, aparecem os três primeiros números, já que se associa ao eu o Um, ao tu o Dois e ao ele o Três, representando nas línguas mais primitivas, como entre os bochimans, uma pluralidade indeterminada, ou seja, muito, assim como entre nós e entre os chineses a palavra cem, que serve a esta mesma finalidade em “cem ocasiões diferentes”, e até a palavra francesa três, proveniente também de “trois”.

Foi em consideração à sua própria pessoa, esse eu colocado no centro de sua atividade, que o primeiro locutor começou a expressar suas relações com as coisas que o rodeavam. E, para fazê-lo, recorreu às posições de seu corpo e aos gestos “dex” de sua mão direita, foi o que ele dirigiu para a coisa que desejava assinalar, chamando a atenção de seu interlocutor. Desta coisa, contentar-se-á mais tarde em dizer o nome, pois, lembremos, dizer prende-se etimologicamente a uma raiz que significa mostrar com o dedo. A palavra aparecia assim como um gesto supletivo e logo substituído, que economiza a realização de um gesto efetivo e tem a vantagem de poder ser entendido por um interlocutor incapaz de ver. A ajuda da etimologia, essa arqueologia da linguagem, de interpretação tão delicada quanto os vestígios desenterrados pelos pré-historiadores, vai permitir-nos precisar o mecanismo simbólico das palavras. (Benoist)