Totem e Tabu

Apenas um exemplo: há cinquenta anos atrás, Freud pensou ter encontrado a origem da organização social, das restrições morais e da religião, num homicídio primordial, ou seja, no primeiro parricídio. Ele narrou a história em Totem e Tabu. No começo, o pai reservava as mulheres para si, expulsando os filhos homens à medida que eles alcançassem uma idade que justificasse o seu ciúme. Um dia, os filhos expulsos mataram seu pai, comeram-no e apropriaram-se das fêmeas. “O banquete totêmico”, escreve Freud, “talvez a primeira festa que a humanidade celebrou, foi a repetição, o festival de comemoração desse importante ato criminoso.” Uma vez que Freud defende que Deus nada mais é que o pai físico sublimado, é Deus mesmo quem é morto e sacrificado no banquete totêmico. “Este assassinato do deus-pai é o pecado original da humanidade. Esta culpa cruenta é reparada pela morte cruenta de Cristo.”

Os etnólogos de seu tempo, desde W. H. Rivers e F. Boas até A. L. Kroeber, B. Malinowski e W. Schmidt, em vão demonstraram o absurdo desse “banquete totemico” primordial. Em vão salientaram que não se encontra totemismo no início da Religião e que ele não é universal – nem todos os povos passaram por um “estágio totêmico”; que Fraser já havia provado que apenas quatro das muitas centenas de tribos totêmicas conheciam um rito próximo da cerimônia de morte e banquete do “deus-totem” (um rito que Freud acreditou ser traço constante do totemismo); e, finalmente, que esse rito não tem nada a ver com a origem do sacrifício, uma vez que o totemismo não ocorre nas culturas mais antigas. Em vão Wilhelm Schmidt mostrou que os povos pré-totêmicos desconheciam o canibalismo, que um parricídio entre eles seria uma total impossibilidade, psicológica, sociológica e eticamente, (e que … ja forma da família pré-totêmica e, consequentemente, da mais antiga família humana de que se tem notícia, através da etnologia, não é nem a de promiscuidade geral nem de casamento em grupo, os quais jamais existiram, de acordo com a afirmação dos principais antropólogos.

Freud não se perturbou nem um pouco com essas objeções e, dessa forma, esse “romance gótico” desvairado, Totem e Tabu, tornou-se, desde então, um dos evangelhos menores de três gerações da elite cultural do Ocidente.

É claro que o gênio de Freud e os méritos da Psicanálise não devem ser julgados com base nas histórias de horror apresentadas como fatos históricos objetivos em Totem e Tabu. Mas é altamente significativo o fato de tais hipóteses desvairadas terem sido aclamadas como teoria científica bem fundamentada, apesar de toda a crítica levantada pelos maiores antropólogos do século. Essa vitória significou a vitória da própria Psicanálise sobre as correntes psicológicas mais antigas e, consequentemente, sua emergência (por muitas outras razões) corno corrente cultural. A partir de 1920, então, a ideologia de Freud foi aceita integralmente. Um livro fascinante poderia ter sido escrito sobre a significação do incrível sucesso desse “roman noir frénétique” Totem e Tabu. Servindo-nos dos mesmos recursos e métodos da psicanálise moderna, podemos desvendar alguns segredos trágicos do intelectual ocidental moderno: por exemplo, sua insatisfação profunda com relação às formas desgastadas do cristianismo histórico e seu desejo de livrar-se violentamente da de seus antepassados, acompanhado de um estranho sentimento de culpa, como se ele próprio tivesse matado um Deus, em quem ele não podia acreditar, mas cuja ausência tomou-se insuportável. Por essa razão, eu disse que a corrente cultural é imensamente significativa, não importando o seu valor objetivo: o sucesso de certas ideias ou ideologias nos revela a situação espiritual e existencial daqueles para quem essas ideias ou ideologias constituem um tipo de soteriologia. (Eliade)