Phenomenology of Life in Border Situations: The Experience of the Ultimate (Husserliana89)
Memórias do Subsolo, de Dostoiévski, é uma crítica devastadora à fé na razão – ou, mais precisamente, à fé na razão instrumental, aquela que nega nossas paixões ou suprime uma parte essencial de nós mesmos. Para Dostoiévski, é assim que perdemos nossa humanidade. A descrição que o homem do subsolo faz da vingança evidencia a crença do autor na hierarquia das paixões.
“Quando estão possuídos, digamos, pelo sentimento de vingança, não resta mais nada em todo o seu ser a não ser esse sentimento. Um homem assim avança direto para seu objetivo como um touro enfurecido, com os chifres abaixados, e só uma parede pode detê-lo… Pois bem, considero esse homem direto como o verdadeiro homem normal… Tenho inveja dele até ficar verde de raiva.” (Dostoiévski, em Kaufmann, 1968, pp. 58-59).
Dostoiévski coloca a individualidade humana em primeiro plano em sua descrição do homem do subsolo, mas o método deste para realizar algo humano encarna uma rejeição radical, profundamente pessimista.
Walter Kaufmann descreve a atmosfera de Memórias do Subsolo como “não feita de vozes suaves e luzes baixas: a voz não poderia ser mais estridente, a luz não poderia ser mais incisiva” (Dostoiévski, em Kaufmann, 1968, p. 13). No entanto, “nenhum prêmio, por maior que seja, justifica um grama de autoengano ou um pequeno desvio dos fatos cruéis” (Kaufmann, 1968, p. 13). O homem do subsolo menciona o Palácio de Cristal – uma referência ao Crystal Palace de Londres, construído para a Exposição Internacional de 1851 – e critica seu público por acreditar
“num palácio de cristal que jamais poderá ser destruído – um palácio onde não se poderá mostrar a língua ou fazer uma careta às escondidas. E talvez seja justamente por isso que tenho medo desse edifício: porque ele é de cristal e indestrutível, e porque não se pode sequer fazer uma careta para ele às escondidas.” (Dostoiévski, em Kaufmann, 1968, p. 79).
O Palácio de Cristal representa, para o homem do subsolo, o ideal da modernidade: uma construção inquestionável, nobre e imponente, da qual não se pode zombar. Dostoiévski é profundamente cético em relação a esse ideal e acredita que os seres humanos devem resistir a ele. O Palácio de Cristal opõe-se diretamente ao homem do subsolo, que defende a necessidade de seguir as paixões, mesmo que isso signifique expressar o lado sombrio e depravado da natureza humana. Ele afirma:
“Quando o homem pode, conscientemente e de propósito, desejar o que lhe é prejudicial, o que é estúpido, profundamente estúpido – apenas para ter o direito de desejar por si mesmo até mesmo o que é muito estúpido e não estar obrigado a desejar apenas o que é sensato… pois, em qualquer circunstância, isso preserva o que temos de mais precioso e importante – nossa personalidade, nossa individualidade.” (Dostoiévski, em Kaufmann, 1968, p. 74).
Se há um valor que o homem do subsolo defende, é a individualidade – mas ela se manifesta como um antivalor, uma oposição à construção do Palácio de Cristal ou ao ideal modernista concebido pelo Iluminismo. Nesse embate entre o homem do subsolo e o Palácio de Cristal, vê-se também a dicotomia entre o indivíduo e a fé na razão instrumental. Uma tensão se estabelece entre a tentativa de ser verdadeiramente si mesmo e simplesmente aderir a um sistema já imposto de fora.
Ao traçar a história do progresso da modernidade, vemos no Iluminismo a exaltação da razão como fonte do avanço humano rumo ao ideal do Palácio de Cristal. Paul Harrison discute essa questão em sua análise do destino da razão – ou, como ele a chama, do “desencantamento da razão”: “O século XVIII foi um século de Iluminismo, de lumières, de Aufklärung, mas o século XX é um século de ‘escuridão gélida e dureza’.” (Harrison, 1994, p. 1). Memórias do Subsolo, escrito no século XIX, prepara o caminho para – e talvez seja uma das críticas mais profundas – a fé iluminista na razão.