Meyrink : A Lenda do Golem

Excertos da versão francesa de « Le Golem », vertida para português.

— Eu estava pensando nos sobretudos que estavam balançando ainda há pouco; parece-me tão estranho quando o vento faz mexer objetos sem vida — disse rapidamente Prokop como para justificar seu silêncio. — É realmente esquisito quando objetos que até aquele momento estavam imóveis e como mortos, começam a se levantar e flutuar, vocês não acham? Um dia em que estava numa grande praça vi alguns pedaços de papel rodopiar com fúria selvagem — apesar de eu não sentir o vento, pois me encontrava ao abrigo de uma casa — perseguindo-se um ao outro como se quisessem destruir-se mutuamente. Num segundo estavam calmos e imóveis outra vez, para recomeçar a correr em todas as direções, enfurnando-se nos cantos, e se espalhando como possessos e, finalmente, acabaram por desaparecer definitivamente atrás de uma esquina.

Somente um jornal deixara de segui-los; estava na calçada, abrindo e fechando-se ruidosamente como se estivesse arfando sem fôlego.

Recordo-me que fiquei preocupado, com uma dúvida horrível: no fim de nossas vidas chegaríamos a ser como aqueles pedaços de papel? Não seria um “vento” invisível e misterioso a nos impulsionar em todas as direções, comandando nossas ações, enquanto em nossa ingenuidade estamos convencidos de gozar de nosso livre arbítrio?

Que tal se nossa vida não fosse nada mais que um inexplicável torvelinho de vento? Aquele mesmo vento de quem a Bíblia pergunta: «Sabes tu de onde ele vem e para onde ele vai?»… Não acontece, às vezes, que sonhamos mergulhar em águas profundas e apanhamos peixes prateados, quando, na verdade, tudo não passa de uma corrente de ar frio que se insinua entre nossas mãos?

— Prokop, você está falando igual a Pernath, o que é que está acontecendo? — perguntou Zwack com ar desconfiado.

— A história do livro Ibbur que ouvimos ainda é pouco — é uma lástima que você tenha chegado tão atrasado, assim você não pôde ouvi-la. Foi isso que o levou a meditar —- disse Vrieslander.

— A história de um livro?

— Pela verdade, é uma história sobre o homem que trouxe o livro e que tinha uma aparência esquisita. Pernath não sabe o nome dele e nem onde ele mora, ou o que é que ele queria, e apesar de ele ter uma aparência marcante, não se pode descrevê-lo com certeza. — Zwack ouviu com atenção.

— Isso é realmente interessante — disse após um breve intervalo:

— Este estranho não era imberbe e com os olhos oblíquos?

— Creio que sim — respondi. — Aliás, tenho certeza disso. Você o conhece?

O apresentador de marionetes sacudiu a cabeça. — É que ele me lembra o Golem.

O pintor Vrieslander deixou cair sua faca.

— O Golem? Já ouvi muito falar nele. Você sabe alguma coisa a respeito, Zwack?

— Quem poderia afirmar que sabe alguma coisa a respeito do Golem? — retrucou Zwach encolhendo os ombros. — Em geral, ele pertence ao reino das lendas até que num dia qualquer algo acontece numa das ruas e ele revive. Então, durante um certo tempo todo mundo fala nele, os boatos atingem uma proporção descomunal, até ficarem tão exagerados que desaparecem pelo fato mesmo de serem inacreditáveis. Dizem que a história teve suas origens no século XVII. Um rabino daquela época teria criado um homem usando fórmulas da Cabala, que a seguir, se perderam, para que esta criatura fosse seu servo, tocasse os sinos da sinagoga e fizesse os trabalhos mais pesados.

Não se tratava, porém, de um homem de verdade, e era animado por uma vida vegetativa, semi-inconsciente. Aliás, vivia apenas de dia, pelas forças de um pergaminho mágico colocado atrás de seus dentes, que atraía as forças siderais livres do universo.

Aconteceu que uma noite o rabino esqueceu de retirar o pergaminho da boca do Golem de recitar suas orações, e a criatura foi tomada por um súbito acesso de fúria demente: começou a correr pelas ruazinhas matando todo mundo que encontrava pelo caminho.

Finalmente o rabino conseguiu agarrá-lo e tirou o pergaminho de sua boca. Naquele instante a criatura caiu sem vida. Sobrou uma minúscula figura de barro que ainda hoje pode ser vista na velha sinagoga.

— Este mesmo rabino foi chamado pelo imperador em seu castelo para evocar os espíritos dos mortos e fazê-los aparecer — disse Prokop, interrompendo. — Alguns entendidos modernos acham que ele se serviu de uma lanterna mágica.

— Hoje em dia as explicações mais absurdas encontram partidários — continuou Zwack sem se alterar. — Uma lanterna mágica! Como se o Imperador Rodolfo, que durante sua vida inteira procurara e colecionara objetos deste tipo, não fosse capaz de desmascarar imediatamente um truque tão ingênuo!

É claro que não sei como se originou a história do Golem, mas tenho certeza que neste bairro existe algo que não consegue morrer, algo que continua a viver nestes lugares, mantendo uma espécie de existência independente. Meus antepassados viveram aqui durante muitas gerações, e ninguém poderia ter uma maior coleção de recordações que eu, sejam elas vividas ou herdadas, a respeito das aparições do Golem.

Zwack parou de repente e percebemos que seus pensamentos tinham se voltado ao passado.

Observei-o enquanto estava sentado à mesa, com a cabeça erguida, suas faces vermelhas contrastando de forma esquisita com o alvo dos cabelos iluminados em cheio pela lâmpada e comparei, sem querer, suas feições com aquelas das marionetes que ele me mostrava frequentemente.

O velho e suas marionetes assemelhavam-se muito!

Tinham a mesma expressão e os mesmos traços!

Raciocinei que havia coisas na terra que não podiam ser separadas de outras coisas enquanto pensava no destino simples de Zwack, pareceu-me de repente descomunal e monstruoso que um homem de seu nível, muito mais instruído que seus antepassados, que deveria ser um ator, pudesse continuar com aquele pobre teatro de marionetes, indo de feira em feira para exibir os movimentos desengonçados e as aventuras entediantes daqueles bonecos que tinham proporcionado um tão precário meio de subsistência a seus antepassados.

Compreendo, porém, que ele não consegue se separar deles, porque fazem parte de sua vida. Quando tentou se afastar deles, eles se mudaram em pensamentos, alojando-se em seu cérebro, sem lhe permitir descansar enquanto ele não voltasse. Por isso, agora, ele os trata com tanto carinho e os veste de lantejoulas.

— Zwack, conte-nos mais algumas coisas — pediu Prokop, e olhou para Vrieslander e para mim para ver se estávamos de acordo.

— Em verdade, não sei por onde começar — respondeu o velho, hesitando — mas não é fácil compreender a história do Golem.

Pernath disse, há pouco, que ele sabe perfeitamente como era aquele desconhecido, mas assim mesmo não saberia como descrevê-lo. A cada trinta e três anos, aproximadamente, nas ruazinhas de nosso bairro acontece alguma coisa que não é particularmente alarmante, mas que assim mesmo provoca o pânico porque ninguém sabe explicá-la ou justificá-la. De vez em quando um homem completamente desconhecido, sem barbas, de tez amarelada e com características mongóis, atravessa o bairro judeu em direção à Escola Velha, com passos regulares e ao mesmo tempo estranhamente cambaleante, como se estivesse a ponto de cair a qualquer instante, e depois, num segundo, desaparece.

Em geral, ele vira uma esquina e some.

Dizem que uma vez ele andou em círculo para voltar ao ponto de partida, uma casa muito velha dos lados da sinagoga.

Alguns exaltados acreditam tê-lo visto sair de uma rua vizinha, indo ao encontro deles. Mas apesar de estar andando sem alguma dúvida em direção a eles, começou a reduzir-se de tamanho, assim como alguém cujo vulto está sumindo no horizonte — e finalmente desapareceu.

Faz setenta anos e a impressão que provocou deve ter sido sumamente dramática, tanto assim que eu me lembro — apesar de ser ainda muito criança naquela época — que a casa da rua da Escola Velha foi revistada dos porões ao sótão.

Descobriram que havia ali um quarto sem porta, com a janela vedada por uma grade de ferro.

Fizeram esta descoberta quando mandaram pendurar roupas em todas as janelas para ver da rua quais quartos eram acessíveis.

Vendo que não era possível encontrar a entrada do quarto, um homem subiu ao teto e desceu por uma corda, para ver pela janela o que havia em seu interior. Quando, porém, chegou perto da janela a corda se partiu e o infeliz se estatelou na calçada. Quando, mais tarde, quiseram recomeçar a experiência, as opiniões sobre a localização da janela foram tão contraditórias, que tiveram de desistir. Eu mesmo encontrei-me com o Golem faz mais ou menos trinta e três anos. Ele estava vindo em minha direção numa passagem estreita e quase que colidimos.

Ainda hoje custo a entender o que aconteceu comigo naquele instante. Afinal, ninguém vive dia após dia à espera de se encontrar com o Golem.

Apesar disso, naquele instante, antes que eu pudesse vislumbrá-lo, algo em mim gritou: o Golem! Neste mesmo momento alguém saiu de sob um arco, e o desconhecido passou bem ao meu lado. Logo em seguida uma multidão transtornada, com os rostos pálidos, precipitou-se para o meu lado e todo mundo perguntou se eu o tinha visto.

Enquanto estava respondendo, tive a impressão que minha língua estava soltando, apesar de não ter tido antes disso nenhuma sensação de paralisação.

Estava admirado de conseguir me locomover e só naquele instante percebi que eu permanecera, mesmo que fosse pela fração de um segundo, em estado de paralisia.

Pensei frequentemente e bastante no assunto, e creio estar chegando o mais próximo possível da verdade quando digo o seguinte: durante o transcorrer de cada geração sempre se manifesta uma espécie de epidemia espiritual, que se propaga com a rapidez de um relâmpago pelo bairro judeu, apodera-se das almas das pessoas vivas por motivos que permanecem desconhecidos e que consegue fazer aparecer, como numa miragem, um vulto desconhecido mas característico, que talvez já viveu por aqui há séculos passados e que talvez deseja ansiosamente reencontrar sua forma e sua substância.

Pode ser que ele esteja permanentemente entre nós sem que consigamos vislumbrá-lo. Da mesma forma que não ouvimos vibrar o diapasão antes que toque na madeira e a faça vibrar em conjunto.

Talvez se trate de alguma obra de arte espiritual, sem consciência própria — uma obra de arte que nasce do informe, da mesma maneira que um cristal, por alguma lei imutável.

Quem sabe?

Nos dias de canícula a tensão da carga elétrica aumenta até que ela se torna intolerável e acaba produzindo um relâmpago. Podia ser que, desta mesma maneira, o acúmulo sem-fim dos pensamentos nunca renovados que intoxicam a atmosfera do gueto produza uma descarga repentina — uma espécie de explosão espiritual que, com uma única chicotada, atire para a luz do dia nossas consciências oníricas? Por um lado nós temos, na natureza, um relâmpago — e por outro lado temos uma aparição que, pelo seu aspecto, sua atitude e seu comportamento, poderiam revelar de forma indiscutível o símbolo da alma coletiva, se nós soubéssemos interpretar a linguagem secreta das formas?

Como muitos indícios revelam a explosão de um relâmpago, existem também sinais angustiantes que prenunciam a chegada deste fantasma no reino da realidade. A figura de um homem caminhando aparece no reboco que se esfarela de um velho muro; as geadas enfeitam as vidraças de flores de gelo e entre elas aparece o rosto rígido de um homem. A areia cai dos tetos de uma maneira diferente provocando, num observador irritado, a dúvida de ter sido arremessado por um espírito invisível que teme a luz e que procura secretamente desenhar toda espécie de estranhas figuras. Se observamos uma impigem monocroma ou qualquer aspereza de nossa pele, ficamos oprimidos pela nossa capacidade de ver por toda parte sinais premonitórios, carregados de sentidos, e que em nossos sonhos acabam assumindo uma forma descomunal. E atravessando todas estas tentativas esquemáticas do pensamento coletivo de transpor as muralhas do cotidiano, sempre encontramos, como se fosse fio condutor vermelho, a certeza dolorosa que a mais recôndita e íntima parte de nosso ser está sendo arrancada, premeditadamente e contra a nossa vontade, com o simples intuito de dar forma a um fantasma.

Quando, ainda há pouco, ouvi Pernath dizer que tinha encontrado um homem sem barba, com os olhos oblíquos, tive a impressão de ver o Golem como já o tinha encontrado.

Ele estava em minha frente como se tivesse brotado do chão. Então senti-me possuído pelo pavor surdo de estar mais uma vez na véspera de um acontecimento inexplicável e senti, por um instante, aquela mesma angústia que já experimentei durante minha mocidade quando as primeiras manifestações espectrais do Golem se projetavam como sombras.

Já faz setenta anos que isso sucedeu — aconteceu uma noite quando o noivo de minha irmã estava nos visitando, e a família queria marcar o dia do casamento.

Naquela época costumava-se jogar chumbo liquefeito dentro da água fria, como um divertimento — e eu permanecia lá, de boca aberta, querendo compreender as coisas — e em meu espírito confuso de criança achava que havia uma ligação entre aquele jogo e o Golem, de quem meu avô falava frequentemente, e pensava que de um momento para o outro a porta ia se abrir para deixar passar o homem desconhecido.

Minha irmã jogou uma colherada de metal liquefeito na bacia cheia d’água e riu-se alegremente vendo minha expressão excitada.

Meu avô apanhou com suas mãos enruga,das e trêmulas o pedaço de chumbo reluzente e o observou perto da luz. De repente todo mundo ficou agitado, as vozes se fizeram mais agudas, todo mundo falava ao mesmo tempo e quando quis me aproximar fui sumariamente afastado.

Muito mais tarde meu pai me contou que o metal tinha-se solidificado na forma de uma pequena cabeça redonda, sem barba, que parecia saída de uma matriz e que se parecia tanto com o Golem que todos tinham, ficado apavorados.

Falei disso com o arquivista Schemajh Hillel que guarda os objetos do culto na sinagoga velha, junto com a figura em terracota dos tempos do Imperador Rodolfo. Ele estudou a Cabala e acha que aquele pedaço de barro em forma humana poderia ser um presságio surgido naquela época, da mesma forma que apareceu em minha casa a cabeça de chumbo. O desconhecido que andava pelas cercanias devia ser a figura imaginária que o rabino da Idade Média tinha imaginado antes de modelá-la na matéria e que agora voltava regularmente, em épocas determinadas pelas configurações astrais, sob as quais tinha sido criado, impulsionado pelo desejo torturante de ter vida física.

A falecida esposa de Hillel também viu o Golem, como eu o vi, e também constatou que, enquanto a misteriosa criatura ficava por perto, ela provocava uma espécie de catalepsia. Ela dizia que estava convencida que tinha sido sua própria alma que, saída do corpo, tinha parado à sua frente, fitando-a nos olhos, com as feições de uma criatura estranha.

Apesar da terrível angústia que a dominava, ela não duvidou por um instante sequer que o “Outro” não podia ser outra coisa senão um fragmento arrancado do seu mais íntimo ser.

Gustav Meyrink (1868-1932)