Meyrink Golem Alma

GUSTAV MEYRINK — O GOLEM
Excertos da tradução em português de Agatha M. Auersperg

— O que é que eu posso dizer? Seria melhor se falássemos no senhor e. . .

— Agora sei que o senhor passou por algumas estranhas experiências que me atingem diretamente, muito mais diretamente do que o senhor poderia imaginar. Por favor, diga-me tudo! — implorou ele.

Não conseguia entender como era possível que minha vida o interessasse mais do que a sua própria, que estava numa situação tão precária, mas para acalmá-lo contei tudo o que tinha acontecido comigo e que me parecia inexplicável.

Toda vez que acabava de relatar um episódio importante ele assentia com a cabeça, com expressão satisfeita, como uma pessoa que encontra a explicação de muitas coisas.

Quando cheguei ao ponto em que a aparição sem cabeça tinha se apresentado a mim trazendo os grãos vermelhos, sua impaciência de saber a conclusão da história ficou evidente.

— Assim, você os fez cair das mãos dele — murmurou pensativo. — Nunca pensei que existisse uma terceira solução.

— Mas não era uma terceira solução — protestei. — Era a mesma coisa que recusar os grãos.

Sorriu para mim.

— O senhor não concorda comigo, senhor Laponder?

— Se o senhor os tivesse recusado, teria seguido o “caminho da Vida”, mas os grãos, que representam as forças mágicas, não teriam ficado onde estavam. O senhor disse que os grãos foram rolando pelo chão. Isso significa que ficaram onde estavam, e ficaram guardados por seus antepassados até chegar o tempo da germinação. Então as forças que por enquanto estão latentes no senhor, florescerão.

Não estava entendendo nada: — O senhor diz que meus antepassados ficarão guardando os grãos?

— A experiência do senhor deve ser interpretada, pelo menos em parte, de uma forma simbólica — explicou Laponder. O círculo das figuras roxas que estavam em volta do senhor era a sequência dos “Eu” herdados, apanágio de todo homem nascido de mulher. A alma não é uma entidade isolada — mas precisa que ela se torne tal, e isso então se chama de “imortalidade”. A alma do senhor é composta de muitos “Eu” da mesma forma que num formigueiro existem muitas formigas. A alma é marcada pelos rastos espirituais de milhares de ancestrais — os fundadores de sua estirpe. Isso acontece com todas as criaturas. Como poderia um pintinho chocado artificialmente saber como procurar o alimento de que necessita, se nele não existisse uma experiência de milhões de anos? A existência do instinto indica, em nós, a presença dos ancestrais em nosso corpo e em nossa alma. Desculpe, por favor, não tive a intenção de interromper.

Terminei meu relato, e não esqueci de acrescentar o que Mirjam tinha dito a respeito do “hermafrodita”.
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Quando terminei olhei para ele e vi que Laponder estava branco como cera. Lágrimas corriam pelo seu rosto.

Levantei-me rapidamente fingindo não ter notado e comecei a andar de um lado para outro da cela, esperando que se acalmasse.

A seguir sentei-me à sua frente e empreguei toda minha eloquência para convencê-lo de que era absolutamente urgente comunicar ao juiz que seu estado mental era patológico.

— Se ao menos o senhor não tivesse admitido o crime! suspirei.

— Não podia agir de forma diferente. Afinal, eles fizeram um apelo à minha consciência! — disse ele ingenuamente.

— O senhor acha que uma mentira é pior do que um estupro e assassinato? — perguntei desnorteado.

— Talvez não, na maioria dos casos, mas na minha situação pessoal. . . Veja o senhor, quando o juiz me perguntou se eu admitia o crime, tive força suficiente para dizer a verdade. Afinal, dependia de mim admitir ou negar. Quando cometi o crime. . . peço ao senhor não me pedir para relatar os pormenores, foram horríveis e não gostaria de me lembrar deles. . . quando cometi o crime, eu não tinha alternativa. Apesar de estar agindo com plena consciência, não tinha alternativa. Algo em mim, cuja existência eu desconhecia, despertou e se demonstrou mais forte do que eu. O senhor acha que se eu tivesse uma alternativa, eu teria matado? Nunca matei, nem sequer um pequeno animal. . . e agora mesmo, eu não seria capaz de matar.

Suponha que haja uma lei que obrigue a matar, e que aquele que não mata seja condenado a morrer — como acontece nas guerras. Então agora eu seria condenado a morrer. Não haveria alternativa para mim. Não poderia matar. Quando cometi o crime, a situação estava exatamente invertida.

— Pois, como o senhor tinha a impressão de ser uma outra pessoa, temos uma razão a mais para fazer o que for possível para evitar a sentença do juiz! — gritei.

Laponder fez um gesto defensivo: — O senhor está enganado. Os juízes estão certos, do ponto de vista deles. Poderiam eles soltar um homem de meu tipo? Para permitir que amanhã, ou depois de amanhã, acontecesse possivelmente outro caso igual?

— Poderiam mandar o senhor para uma instituição psiquiátrica. Pretendo dizer-lhes isso mesmo!

— O senhor estaria certo, se eu estivesse louco — respondeu Laponder com o rosto impassível. — Mas eu não sou louco. Sou algo completamente diferente — algo que, sem dúvida, se parece muito com um louco, mas que é exatamente o contrário. Por favor, escute. Ouça-me, por favor. Acho que o senhor não terá dificuldade em compreender. O que o senhor me disse a respeito do fantasma sem cabeça — que naturalmente é um símbolo, cujo significado é bastante fácil de interpretar, se o senhor pensar um pouco — tudo isso já aconteceu também comigo, da mesma maneira. Mas eu apanhei os grãos.

Por isso, tomei o “caminho da morte”. Não posso pensar em nada mais sagrado do que me deixar levar pelo Espírito que está em mim: cegamente, em toda confiança, para qualquer caminho que queira me levar: para o patíbulo ou para o trono, para a riqueza ou para miséria. Quando tive que escolher, sempre o fiz sem hesitações.

Foi essa a razão pela qual não menti quando tive a possibilidade de escolher.

O senhor conhece as palavras do profeta Miqueias? Foi-te dito, oh! homem, o que é bom e o que o Senhor requer de ti.

Se tivesse mentido, teria criado a causa, pois me foi dada a possibilidade da escolha — enquanto não criei nenhuma causa quando cometi o crime; tratava-se simplesmente do efeito de uma causa que de há muito tempo se encontrava latente em mim, e sobre a qual eu não tinha nenhum controle.

Assim, minhas mãos estão limpas.

Foi o Espírito em mim que me levou a ser assassino, e dessa forma cumpriu uma execução; e como os homens me colocarão na forca, meu destino será desassociado do deles: conseguirei a liberdade.
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Tive a impressão de me encontrar na presença de um santo, e meus cabelos se arrepiaram de espanto quando me dei conta de minha pequenez.

— O senhor me disse que, como consequência da interferência de um hipnotizador, perdeu, durante muito tempo, qualquer lembrança de sua mocidade — ele continuou. — Trata-se do sinal, aliás do estigma, de todos aqueles que foram picados pela “cobra do reino espiritual”. Parece até que duas vidas precisem se reunir numa só, como o enxerto se sobrepõe à planta selvagem, antes que possa acontecer o milagre da ressurreição. A separação que normalmente acontece com a morte, neste caso é provocada extinguindo a memória — às vezes simplesmente por uma rápida conversão interna.

Isso aconteceu comigo quando aos vinte e um anos, sem motivo aparente, acordei uma manhã completamente mudado. Tudo que eu tinha amado até aquele momento me deixava indiferente: a vida me parecia insossa como uma história de índios, sem nenhuma realidade; os sonhos se transformaram numa certeza. . uma certeza apodítica, definitiva, o senhor me entenda bem: Uma certeza real, enquanto a vida normal se tornava um sonho.

Todos os homens poderiam conhecer esta experiência se eles tivessem a chave. Mas a única chave está em tomar conhecimento em sonho de seu próprio “Eu”, de sua própria peie, por assim dizer — e em encontrar algumas frestas pelas quais a consciência possa deslizar entre a vigília e o sono profundo.

Foi por isso que ainda há pouco eu disse ao senhor que “perambulo”, e não que “sonho”.

A luta pela imortalidade é uma luta pelo cetro, pelo domínio sobre os fantasmas e os clamores que moram em nós, e a espera de que nosso próprio “Eu” se tome rei é a espera do Messias.

O fantasma, o Habal Garmin, o “hálito de ossos” da Cabala que o senhor viu, era o rei. Quando for coroado, o fio que une o senhor ao mundo pelos sentidos e pela razão partir-se-á. O homem é como um tubo de vidro em que rolam bolas coloridas — e na maioria dos casos, só existe uma bola. Quando ela é vermelha o homem é “mau”; quando é amarela, o homem é “bom”. Quando existem duas bolas, uma vermelha e uma amarela que se perseguem, diz-se que o caráter é “instável”. Nós, que já fomos picados pela cobra, vivemos numa só existência o que acontece a uma raça toda durante uma era: as bolas coloridas correm no tubo com velocidade incrível, e quando elas alcançam seu alvo, nós nos transformamos em profetas, em espelhos de Deus.

Laponder se calou. Fiquei incapaz de pronunciar uma palavra sequer durante muito tempo. Estava atordoado pelo que acabara de ouvir.

— Porque o senhor me pediu para lhe contar minhas experiências quando, na realidade, o senhor se encontra muito, mas muito acima de mim? — perguntei finalmente, voltando a falar.

— O senhor está enganado. Eu estou muito abaixo do senhor, — retrucou Laponder. — Fiz aquele pedido porque sentia que o senhor teria a chave que ainda me falta.

— Eu? A chave? Meu Deus!

— Isso mesmo: o senhor. E o senhor me deu essa chave. Acho que hoje no mundo inteiro não pode haver ninguém mais feliz do que eu.

Um barulho de ferragens, do lado de fora. Estavam mexendo na fechadura. Laponder quase não percebeu.

— O hermafrodita é a chave. Agora sei, tenho certeza disso. Não fosse por nenhum outro motivo estou feliz que venham me buscar, pois muito em breve atingirei a meta final.

Não conseguia ver o rosto de Laponder devida às lágrimas

que corriam de meus olhos, mas ouvia que ele sorria enquanto falava.

— Adeus, senhor Pernath, e fique certo de uma coisa: amanhã eles enforcarão somente minhas roupas. O senhor mostrou-me o que havia de mais lindo. . . a última coisa que ainda não conhecia. Agora começam as bodas… — levantou-se e seguiu o guarda — … que têm uma estreita relação com o assassinato.

Estas foram as últimas palavras que ouvi, e eu as compreendi apenas vagamente.

Gustav Meyrink (1868-1932)