NOTAS SOBRE OS UPANIXADES
Retirado da tese de doutorado de Selma de Vieira Velho — A Influência da Mitologia Hindu na Literatura Portuguesa dos Séculos XVI e XVII.
A Morte é considerada uma ilusão, uma aparência da realidade, porque aquilo que parece destruição não é propriamente destruição mas uma mudança ou transformação. O homem mortal fenece como os frutos do campo e renasce como eles, porque o homem, sedento de riquezas, não enxerga a passagem para os céus mas torna-se um escravo da Morte para a qual regressa repetidas vezes.1 A crença na ilusão da morte é muito profunda, e não é só a morte que é considerada como uma ilusão, mas a própria vida é também tida como uma ilusão, porque a santidade, as oferendas, os ensinamentos sagrados, o passado e o futuro é o material com que Deus talha a ilusão que permeia o Universo.2
A Morte e a Vida não só são ilusões mas também princípios complementares, pois existe uma transformação perene e estável que ultrapassa as fronteiras da vida e da morte. Aqueles que ultrapassam essas fronteiras incorporam-se no Espírito do Criador, porque sendo puros são aqueles a quem a desonestidade, a mentira e a ilusão não mancham.
“Aquele que sabe que o nascimento e a dissolução do nascimento perfazem uma unidade — pela dissolução cruza para além da Morte, e pelo nascimento goza a Imortalidade”3.
Tendo por base a unidade transcendental do Universo, também se considera essa unidade o resto e a soma de tudo quanto exista. Pela sua própria natureza ela exige uma Força ou Poder que a governe, mas que não sendo governado pelo Tempo é infinito, não sendo governado pelo Espaço é indivisível, e não sendo governado pelas mudanças e pela Casualidade, é imutável. É um Poder que distingue todas as coisas. É dele que se originaram a terra, a água, o fogo, o ar e o éter4. E a lei das Obras resolve-se no seu ciclo em função desse Poder. Sendo a base a unidade através da diversificação, é único o Espírito que existe a permeia o universo inteiro, tal como as miríades de linguetas duma fogueira que tem o fogo como o ponto da sua origem. É na Unidade imutável, interminável e invariável quê se resolvem todas as variações.
“É único o Espírito que existe no homem e o espírito que existe no Sol, e nenhum outro existe além desse. Aquele que sabe isso, quando parte deste mundo integra-se nesse Ser que é o alimento; integra-se nesse Ser que é o sopro da vida; integra-se nesse Ser que é o pensamento; integra-se nesse Ser que é a bem aventurança, cuja Escritura é esta”5).
Esse Ser é o princípio e a Causa Inspiradora do co-ordenação de todos os elementos. É nele que se encontram o passado, o presente e o futuro, e o tempo não o alcança porque é maior do que o Tempo. É uma força em si e por si, eterna, inalterável e indestrutível e por isso indefinível porque o movimento, as mudanças e a morte são perante ela fenômenos transitórios e aparências da Unidade eternamente perfeita e perfeitamente eterna.
Os Upanixades não possuem um sistema coerente e lógico de filosofia tal como a filosofia aristotélica ou platônica, mas elaboram vários princípios e doutrinas que hoje são fundamentais à filosofia Hindu. A sua tendência mais importante é para a reflexão e ponderação. Os poéticos hinos de louvores dos deuses do Rig Veda dão aqui o lugar ao raciocínio e à buscadas causas e da realidade da existência. As suas especulações intelectuais levaram ao estabelecimento de três princípios fundamentais:
(I)A Unidade Eterna através da multiplicidade das aparências:
Tudo quanto é circunscrito pelo tempo obedece às leis do nascimento e da morte; porém, a estabilidade da unidade transcendental é eterna e portanto transcende o tempo. Tudo quanto é circunscrito pelo espaço tem de aumentar e diminuir pela sua própria natureza. Porém, a estabilidade da unidade transcendental é invariável e portanto, transcende o Espaço. Tudo quanto aumenta e diminui, tudo quanto nasce e morre, e sofre mudanças, obedece à lei da Casualidade. Porém, a estabilidade da unidade transcendental é fixa e imutável, e portanto, transcende a lei da Casualidade.
(II) Unidade da Alma Consciente do Universo:
A vida e tudo quanto existe emana do Espírito, pois ele contém o universo inteiro. Ele é o ser ou o “ego” das coisas inanimadas e animadas, como também o “ego” do homem na sua individualidade. A Natureza é apenas uma ilusão de Brahman ou Espírito Supremo. É através do princípio da unidade eterna que se identificam a Natureza, a Alma Universal e o “ego” do Homem. A inconsciência, ou antes, a não-consciência da Natureza é considerada como uma aparência da realidade, porque existe sempre uma Inteligência consciente a trabalhar em tudo quanto existe, animado e inanimado, porque existe um Deus que é único e se oculta em todas as criaturas. Ele permeia todas as coisas e todos os seres. É o Senhor da vida, Absoluto e sem modalidades ou atributos, e que controla tudo. Só o homem decidido vislumbra Deus em si próprio e alcança a bem-aventurança eterna. O Eterno é a Consciência em todas as consciências.
(III) O Transcendente Indivisível:
A terceira realização é baseada nas primeiras duas. O “ego” transcendente do indivíduo por ser identicamente o mesmo, é tão completo como o “ego” transcendente do universo. O Transcendente, sendo indivisível, as individualidades separadas são apenas uma das aparências em que se baseia o fenômeno da existência. E através desse princípio que o Absoluto é reconhecível. Brahma é alguma coisa do tangível, mas Brahman, Absoluto e transcendente define-se só através do “Neti, Neti”, isto é, não é isso, não é aquilo — portanto a Absoluto desafia a descrição.
“O intelecto pueril, desnorteado, e embriagado com a ilusão das riquezas, não pode abrir os olhos para observar a passagem que conduz aos céus. Todo aquele que crê apenas na existência deste mundo e em nenhum outro, volta repetidas vezes para a escravatura da Morte”. KATHA UPANIXADE, Ciclo2. Cap. 2, Ver: 6 ↩
“A santidade, os sacrifícios as promessas, e todas as oferendas, e tudo quanto existiu no passado e existirá no futuro, e tudo quanto os Vedas ensinam, — tudo isso é o material com que o Senhor da Ilusão talha para si o seu variado Universo, onde,à semelhança duma armadilha,esse outro é aprisionado através da sua Ilusão. Conhecei a Natureza como Ilusão, e Maheswara, o todo poderoso, como o Senhor da Ilusão: o mundo inteiro, em movimento, enche-se da criação, como se fossem seus membros”. Shwetashwatra Upanixade: Capo. Ver: 9-10 ↩
“Ele envolve em Si, eternamente, o Universo inteiro. Aquele que sabe isso, torna-se a morada do Criador do Tempo e das modalidadas da Natureza. Ele distingue todas as coisas e pela sua ordem, a lei das Obras resolve-se no seu próprio ciclo. Considerai a água, o fogo, o ar, e o éter como a fonte de toda a origem.” Shwetashwatra Upanixade Cap6, Ver:2 ↩
Taittirya Upanixade: Cap. 8 (Brahmanandaval li ↩