ARENDT, H. Pensar sem corrimão: Compreender (1953-1975). Rio de Janeiro, RJ: Bazar do Tempo, 2021.
TODA OBRA-PRIMA PODE ser lida em vários planos, mas para que seja considerada uma obra-prima é preciso que todos os fios estejam organizados de maneira a formar uma unidade consistente em cada plano. Sobre Os demônios pode-se dizer que se trata, no plano inferior, e no entanto indispensável, de um roman-à-clef, em que tudo e todos podem ser verificados. A trama é retirada diretamente dos jornais da época, nos quais os personagens aparecem no centro de uma história real: Piotr Vierkhoviénski é Serguei Nietcháiev; seu pai, Stiepan Trofímovitch, é uma mistura de Granovski e Kúkolnik; Chátov é Dostoiévski, e assim por diante. Nietcháiev voltara da Suíça, aonde havia ido após se envolver em atividades conspiratórias nas quais colaborara com a polícia – ele sempre trabalhou para os dois lados. Na Suíça, tinha fingido ser o chefe de uma rede fictícia de “quintetos” que atuava em toda a Rússia. Lá conheceu Bakúnin, de quem ganhou total confiança, e o resultado de sua colaboração foi O catecismo revolucionário. A maioria das ideias do livro é provavelmente de Nietcháiev. Trata-se do testamento de um homem arruinado, sem interesses próprios, sem nem mesmo um nome. Ao voltar para a Rússia, Nietcháiev finge ser um “emissário do exterior”. Forma então um verdadeiro quinteto e tem a iniciativa de assassinar o estudante Ivanov, com o objetivo de, com o crime, enredar os membros do quinteto. Os cinco foram capturados, mas Nietcháiev conseguiu fugir para o exterior. Foi nesse momento que Dostoiévski escreveu Os demônios (1869). Nietcháiev foi extraditado pela Suíça em 1872, ano em que o livro foi lançado, e morreu na prisão em 1882. Para construir o personagem ficcional Piotr Vierkhoviénski, mesclaram-se também a Nietcháiev o membro da “Jovem Rússia” Zaichnevski, que possuía um extraordinário poder de sedução sobre as mulheres, e Tkachev. Contudo, Tkachev talvez seja mais o protótipo para a criação de Chigalióv, na medida em que ele já tinha proposto matar todas as pessoas acima de 25 anos, para regenerar a Rússia. Tkachev, aliás, resenhou o livro e declarou que os personagens eram mentalmente adoecidos e não revolucionários – o que mostra quanto os personagens de ficção de Dostoiévski estão conectados com os acontecimentos reais da época.
Também completamente realistas são as descrições de Dostoiévski do governo nas províncias, de Lembke e dos trabalhadores de Chpigúlin. A aparentemente inacreditável incompetência da burocracia russa é expressa com grande precisão nas palavras de Lembke: “Com a infinidade de obrigações que tenho não consigo desempenhar nenhuma e, por outro lado, posso dizer com a mesma certeza que nada tenho a fazer aqui.” Há também o escândalo Chpigúlin, a greve de trabalhadores realizada por motivos justos, na qual nenhum conspirador esteve envolvido. A descrição de Dostoiévski é inteiramente realista: a partir de 1896, nenhuma greve em São Petersburgo, depois em Petrogrado, teve interferência externa. Na medida em que existe um sistema, ninguém tem utilidade; o efeito é “como se tivesse faltado chão debaixo dos pés”. Os trabalhadores eram a exceção à podridão da sociedade. Por algum tempo, tudo se manteve sem consequências, pois o absoluto peso opressor da estupidez, complexidade e ineficiência parecia tornar o sistema resistente e impenetrável. Mas quando alguém disse a Lênin “Você está diante de um muro”, ele respondeu: “Sim, e esse muro está podre.”