Pessoa (LD:43) – a distância entre mim e o meu fato

De repente, estou só no mundo. Vejo tudo isto do alto de um telhado espiritual. Estou só no mundo. Ver é estar distante. Ver claro é parar. Analisar é ser estrangeiro. Toda a gente passa sem roçar por mim. Tenho só ar à minha volta. Sinto-me tão isolado que sinto a distância entre mim e o meu fato. Sou uma criança, com uma palmatória mal acesa, que atravessa, de camisa de noite, uma grande casa deserta. Vivem sombras que me cercam só sombras, filhas dos móveis hirtos e da luz que me acompanha. Elas me rondam, aqui ao sol, mas são gente. E são sombras, sombras…

[Excerto de PESSOA, Fernando. Livro(s) do Desassossego. São Paulo, 2017 (edição digital, formato epub)]

Fernando Pessoa (1888-1935)