Excertos do livro organizado por António Quadros, “A procura da verdade oculta”. Fragmentos do acervo do autor, de diferentes datas, sobre o tema da moral.
O Problema do Mal
A ideia de que esta vida é injusta assenta na de que esta vida é toda a vida, e disto não há prova. Não há dúvida que existe o mal; o de que pode haver dúvida é de que o mal vença, ou de que o mal representa justiça. Qualquer mal que haja, ainda que dê em bem, é mal em si mesmo; não é, porém, necessariamente injustiça. Pode ser o resultado de uma causa anterior, a nós incógnita; pode ser a provação para a conquista de um bem futuro, que desconhecemos.
A Moral
1. Moral da Força — a das qualidades que revelam a força.
2. Moral do Domínio — a das qualidades que (…)
3. Moral do Ideal
Humildade
Ascetismo
A moral é quela noção que os homens têm dos atos como valendo qualquer coisa, fora da relação com a sua utilidade. Antes, em relação com a sua utilidade vital (Trata-se de um dos apontamentos do autor para um ensaio, nunca completado, sobre este tema. Provavelmente de 1915.).
O Sistema Moral
Toda a noção moral pressupõe e em si in-extrinsecamente inclui 3 conceitos: (1) o conceito de valor, (2) o conceito de utilidade, (3) o conceito de autoridade.
O 1.° tem em comum com a arte.
O 2.° em comum com a ciência.
O 3.° com a religião.
A noção de valor pertence apenas àquelas manifestações em que a perfeição é impossível — ante a moral.
Definindo, pois, temos que um sistema moral é a noção (Var.: temos que um sistema moral é a ordem de valores…) de valor que uma sociedade, para lhe ser útil, impõe a todos que nela queiram viver. Temos aqui os três princípios — valor, utilidade e autoridade.
Ora há uma só coisa primordial que preencha essas condições — a força. A força vale (porque há graus nela — imperfeição indefinida); a força é útil, é a coisa essencialmente útil; e só a força pode, primordialmente, ter autoridade, porque é a única coisa que, por sua natureza, a pode impor.
A beleza tem valor, mas não tem autoridade — direta, pelo menos, não a tem.
A ciência é útil diretamente, mas não tem diretamente valor. A sua noção fundamental (…) exclui o valor. (Importa não confundir valor e utilidade.)
Graus:
(1) A moral do poder (ou da força).
(2) A moral da inibição (a melhor desta é o estoicismo).
(3) A moral do ideal (inibição em vista de um ideal). (Texto incompleto, possivelmente de 1914. É antecedido da indicação: A Moral da Força — Cap. I. Deve ser um dos apontamentos (como alguns outros que a seguir apresentaremos) para um livro talvez com aquele título, mas que não chegou a ser organizado.)
O Senso Moral
A moral, opondo-se à ciência, que é a teoria do que é — é a teoria do que deve ser. O próprio fato, porém, de existir uma teoria do que deve ser, conduz, já de si, a uma conclusão. Como surgiria a teoria de alguma coisa que deve ser? Pela insatisfação com o que é. Mas, a insatisfação com o que é, implica uma inadaptação ao meio; e, uma inadaptação ao meio, implica uma morbidez.
(?) Conclui-se, portanto, que o senso moral é essencialmente mórbido, porque é mórbido na sua origem.
O mesmo, porém, acontece com a filosofia, que é a teoria do que é. Para quê uma teoria do que é, se o que é existe, sem teorias? E que o que é não é inteiramente compreendido por nós; e, portanto, para nós, não é inteiramente. Por isso nos aplicamos a querer inteiramente compreendê-lo.
Pelo que provei na primeira parte deste livro, pode já calcular-se qual o valor desta especulação. Procurar compreender o mundo é, já o vimos, uma frase desprovida de sentido; e já vimos também, complexamente, por que o é. Ilegítima, portanto, como procura da «verdade», qual é o papel da atividade filosófica; e que relação tem com ela a atividade propriamente científica?
Demonstrabilidade de como a evolução se faz (a envolve) por uma espécie de degenerescência do estádio anterior, de uma decadência. O orgânico é uma doença do inorgânico, porque implica um devir das suas leis; o social é um desvio do orgânico, do zoológico; porque — ut supra — a essência da atividade social consiste causadamente em uma inadaptação ao meio. A subsistência, porém, implica uma nova adaptação; portanto o que há é qualquer violenta (especial) desadaptação que envolve a necessidade de um esforço adaptativo tão violento que gera um novo método adaptativo. (…) (Presumivelmente de 1914, indicando A. Mora — Parte II.)
Tipos de Homens e Tipos de Moral
Devemos pôr de parte e ideia de haver uma só moral, porque, havendo, distintamente, três tipos de homens, não pode haver a mesma regra de vida para todos os três tipos. «A mesma lei para o leão e para o boi é tirania», disse Blake.
E curioso que a divisão vulgar da sociedade em aristocracia, classes médias (ou burguesia) e povo reflete, embora por vezes artificialmente, esta divisão natural da chamada «humanidade» — coisa que não existe. E é de notar que é contra esta tríplice forma do homem que esbarra todo o preconceito de igualdade, toda a ideia de supor que, sociologicamente, existe «humanidade». A palavra humanidade significa tão-somente «espécie humana»; é só biológica, e ninguém tem pois o direito de a empregar, porque não corresponde a um fato, em qualquer coisa de ordem social.
Os homens dividem-se em três categorias: (1) os homens naturais, com instintos naturais, diretos e simples; (2) os homens civilizados, com a transformação repressiva desses instintos, que todavia subsistem; (3) os homens condutores do mundo, em quem esses instintos são, ou abolidos, ou utilizados como não tendo importância, ou transubstanciados em super-instintos.
É evidente que a estes três tipos não convém a mesma moral. Para o homem do povo, a coragem, a força, a vitalidade, e as virtudes ou qualidades que nelas assentam, são o sinal do bem. Para o homem das classes médias, a honestidade, a lealdade, (…) são o sinal do bem. Para o aristocrata, (…)
Povo: qualidades de vitalidade e energia — força direta.
Classes médias —
a) qualidades de força harmonizadas — honestidade, lealdade, bondade,
b) qualidades de força constrangidas.
Aristocracia —
a) qualidades de força abolidas,
b) qualidades de força relegadas a um segundo plano,
c) qualidades de força transubstanciadas. (Texto sem data, outro fragmento para o livro referido, tendo aliás a indicação: A Moral da Força, ou coisa análoga.)
História e Norma
Toda a vida é essencialmente atividade, e toda a vida consciente, como é essencialmente uma consciência da atividade, tende a ser uma tendência para dar regras a essa atividade; pois a consciência, sendo uma forma da vida, é uma forma da atividade que é a vida, e tende pois a agir. A ação da consciência é pois de regular a vida.
Como a atividade do espírito se divide naturalmente em inteligência, emoção e vontade, o regrar da atividade do espírito é feito quanto à inteligência, quanto à emoção e quanto à vontade. O regrar da inteligência é o regrar do compreender e a esse chamamos Ciência. O regrar da emoção é o regrar do sentir, e a esse chamamos Arte. O regrar da vontade é o regrar da ação sobre o exterior e a esse chamaremos Norma. Dessa norma a moral, que é o regrar da ação entre ente vivo e ente vivo, é somente uma parte.
A ciência aplicada é uma Norma — uma norma baseada na Ciência. Mas há normas que se não baseiam na ciência — normas puras, que constroem suas regras e as aplicam. Tais são, por exemplo, os jogos, as leis, os processos (incluindo a contabilidade) e, finalmente, a Moral.
Tem-se discutido se a História será uma ciência ou uma arte. Poderemos discutir se será uma ciência, uma arte ou uma norma. Na verdade, se por história entendemos o escrever dela, é uma arte; se por história entendemos o descobrimento das coisas i que se passaram, é um preliminar da ciência, ou uma ciência virtual; se por história entendemos o descobrimento das leis que regem as sociedades, então é, ou tende a ser, uma ciência, e mais propriamente se chamará sociologia; se por história entendemos o estabelecimento de regras para nossa conduta social e nacional, então diremos que é uma norma. (Texto provavelmente de 1915, com a indicação: Ethics.)
O Altruísmo e a Expansão da Personalidade
O altruísmo, em seu excesso é contra a moral, porque a moral não sendo mais do que uma expansão da personalidade (individualista de todo), tudo quanto rebaixa a personalidade é imoral.
O altruísmo é, como tudo em que o subjectivo não antepara o objectivo, um sintoma de desequilíbrio; neste seu exagero é exatamente idêntico em natureza à avareza, (…)
O único fim do altruísmo é completar por uma expansão, a personalidade; desde que o meio de expansão se torne um fim, dá-se uma coisa de degenerescência, como tudo quanto envolve uma confusão de meios com fins, isto é, uma confusão de funções, basilarmente. (Presumivelmente de 1914, com a indicação: A Moral da Força.)
O Pessimismo
Esperar pelo melhor é preparar-se para o perder: eis a regra. O pessimismo é bem grande, é fonte de energia. (Provavelmente de 1910)