Poimandres Cosmogonia Fase III

Excertos de HERMETISMO E MÍSTICA PAGÃ, traduzidos e anotados por Antonio Carneiro

TERCEIRA FASE (I 9-11)

É em virtude desse princípio da não-participação do Pai que se vê aparecer, no limiar da 3ª fase, um novo personagem divino, um segundo filho de Deus, o Noûs demiurgo. O Noûs Pai é macho e fêmea (arrhénothélus; (v. Andrógino) (v. Annick de Souzenelle, Macho-Fêmea), sendo luz e vida, em grego Phôs (neutro) e Zôé (feminino). Gera então um segundo filho, o Noûs demiurgo, deus do fogo e do sopro, cujo papel é de formar os sete Governadores, isto é, as sete esferas planetárias que envolvem em seus círculos o mundo sensível e, por seus movimentos, produzem o Fado.

Nesse momento o Verbo de Deus (o filho Primogênito) que tinha ficado em baixo onde cobria o magma de terra e de água, vai juntar-se o segundo filho, Noûs demiurgo, deus do fogo, na região dos astros ígneos que esse Noûs demiurgo acaba de formar. O Verbo se uniu ao Demiurgo (« pois, lhe é consubstancial ») e, por suas ações conjuntas, Logos e Noûs demiurgo colocam em movimento a atividade dos sete círculos. Esta rotação produziu então, na parte inferior do mundo material, os animais do ar, da água e da terra (terra e água, nos foi dito, estiveram separadas) e todos esses animais são «sem Razão», aloga1 , pelo fato que o Logos deixou o mundo lá de baixo pela região dos astros. Aprendemos, além disso, por um incidente posterior (I, 18) que esses animais são originalmente bissexuados, ao mesmo tempo macho e fêmea2 .

Dois traços são a destacar nesse parágrafo. Logo de início a dualidade do Logos e do Noûs não parece ser imposta por uma necessidade lógica. Por essas diferentes fases da criação — discriminação dos elementos, organização da região do fogo dividida em sete esferas planetárias — foi suficiente, logicamente, de apenas um só demiurgo que tivesse podido nomear tanto Noûs quanto Logos. A dualidade pareceu imputável, aqui, não tanto a uma necessidade lógica quanto à multiplicidade das fontes as quais o autor tomou emprestado. Encontrou de uma parte um Logos demiurgo (assim como Fílon), de outra parte um Noûs demiurgo, e utilizou, volta a volta, esses dois personagens divinos sem se dar conta demasiado que seus papéis se confundiam: o que marca a incerteza do hermetista é o incidente « pois ele (o Logos) lhe era consubstancial (ao Noûs) ».

O segundo traço notável é o incidente (I, 11): «E essa rotação dos círculos, segundo o querer do Noûs (sc. do Noûs Primeiro), produziu animais sem razão»3 . Mais longe ainda: « A terra e a água tinham sido separadas, segundo o querer do Noûs » (ver também I, 18). Parece que se vê aqui como trabalha nosso hermetista. Ele tomou emprestada a maior parte dos elementos de sua cosmogonia das obras anteriores, onde a Criação está bem relacionada ao Deus Supremo (como em v.g. III). Para marcar seu desígnio de afastar Deus de toda participação à gênese do mundo, multiplica os intermediários, as hipóstases demiúrgicas. Mas, deixa passar alguns detalhes que traíram o caráter primitivo, na espécie otimista, da fonte que utilizou. De qualquer maneira esses detalhes não chocam, pois, com toda evidência, a separação da terra e da água e a produção dos animais são desses traços que o Criador do Gênese hebraico reconheceu como valde bona4 .

Observamos enfim que os sete círculos planetários são eles-mesmos maus uma vez que sua matéria é feita de fogo; ora, o fogo saiu da Natureza úmida que é essencialmente má.

1 Vide: Les animaux techniciens — Réflexions sur l’animal faber vu par les Anciens, Jean Bouffartigue, § 26, linha 15, In: Revue Rursus, 1 | 2006, Le modèle animal (I) — Actes du 38e Congrès International de l’APLAES : « L’animal, un modèle pour l’homme » dans les cultures grecque et latine de l’Antiquité et du Moyen-Age.
2 Quando os animais são bissexuados possuem os órgãos genitais masculinos e femininos: são os hermafroditas. As ostras são alternativamente machos e fêmeas. Quando existe ambiguidade entre os dois sexos, tem intersexualidade, como é o caso das lampreias, peixes e anfíbios.
3 Sextus coloca no mesmo plano as representações do homem e as daqueles animais “que se diz” sem razão (aloga zôia), considerando como próprio a um dogmatismo cego de orgulho o fato de se fiar somente na phantasiai dos homens e de considerá-los como os únicos zôia dotados de razão. In: pag. 196, Cristina Viano, Héraclite et les plaisir des animaux, In: L’animal dans l’Antiquité, Barbara Cassin, Jean-Louis Labarrière et Gilbert Romeyer Dherbey, Édition Vrin, « Bibliothèque d’Histoire de la Philosofia », 1997, 632 p., ISBN : 978-2-7116-1323-6. Texto disponível em books.google.com/
4 Possível referência para Gn 1,31-Vulgata: viditque Deus cuncta quæ fecit et erant valde bona et factum est vespere et mane dies sextus. Curiosamente esta citação também foi usada por James Joyce em Ulysses na quarta linha do último parágrafo da página 48 de “Annotations to James Joyce’s Ulysses”.

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