Ratié (IRSA:Intro:III.4) – os outros não existem?

Entretanto, a noção de reconhecimento envolve um problema ainda mais complexo e fundamental, porque não é apenas ontológico, mas também epistemológico e soteriológico.

A Pratyabhijñā se apresenta abertamente como uma busca racional pela identidade. Portanto, pretende estabelecer a verdade de uma proposição apelando apenas para os instrumentos ou meios de conhecimento (pramāṇa) unanimemente reconhecidos como válidos pelos filósofos indianos: experiência (anubhava) ou percepção imediata (pratyakṣa) e inferência (anumāna). Abhinavagupta aponta, além disso, que todo o tratado pode ser lido como uma longa inferência de acordo com a definição, já clássica no Nyāya na época em que estava escrevendo, de inferência para outros (parārthānumāna) ou inferência de “cinco membros” (pañcāvayava). De acordo com essa definição, uma inferência destinada a convencer os outros — em oposição à simplesinferência para si mesmo” (svārthānumāna) — deve consistir na proposição a ser demonstrada (pratijñā), a razão (hetu) que permite que essa proposição seja inferida, um exemplo (udāharaṇa) que ilustra a concomitância entre a razão e a proposição a ser demonstrada, a aplicação (upanaya) da razão ao caso particular da proposição a ser demonstrada e, finalmente, a conclusão (nigamana). Abhinavagupta, após mostrar em seu comentário sobre o primeiro verso do tratado que ele contém, como que em germe, todos os temas que o restante do tratado desenvolve, conclui:

Assim, essa sentença (constituída pelo primeiro verso do tratado), por conter a totalidade das coisas que devem ser provadas, assume a forma da enunciação dos temas (que o tratado desenvolve), e consiste em um resumo da tese a ser provada (pratijñā) (que constitui o primeiro termo de uma inferência de cinco termos) ; enquanto o tratado, entre (essa sentença introdutória e a última sentença), estabelece a razão (para essa inferência) (hetu), bem como (o exemplo (udāharaṇa) e a aplicação ao caso particular (upanaya)). Finalmente, o último verso, (que começa com) ‘Assim expliquei…’, constitui a conclusão (nigamana). Assim, esse tratado de cinco membros (pañcāvayava) beneficia a instrução de outros (paravyutpatti).

O benefício do tratado é a instrução de outros (para), porque ele consiste inteiramente de inferência para outros (parārthāmumāna). Ao dar esse último esclarecimento, Abhinavagupta relembra o caráter dialético do empreendimento do Pratyabhijñā, pois o śāstra é, acima de tudo, um diálogo com os outros: seu objetivo é convencer os outros conferindo a uma tese, por meio de inferência, a força da necessidade lógica, mas só pode fazê-lo no reconhecimento prévio das pressuposições dos outros contraditórias a essa tese e no exame crítico dessas pressuposições: os próprios naiyāyika insistem no vínculo indissolúvel entre a inferência para os outros e o diálogo filosófico (vāda).

O exame racional que é o tratado é, portanto, um meio de conhecimento (pramāṇa) que visa convencer os outros da validade de uma tese — neste caso, a identidade do indivíduo com a consciência absoluta — demonstrando essa tese por meio de inferência. Entretanto, tal afirmação parece problemática em vários aspectos. Em primeiro lugar, se tudo é o Si, e se o Outro é apenas uma aparência afetada pelo Si, é de se perguntar quem Utpaladeva poderia estar tentando convencer além de si mesmo — no entanto, ele deixa isso claro logo no início do tratado: como ele mesmo alcançou sua meta, é a “humanidade” (jana) que ele deseja ajudar, e é a partir de uma perspectiva puramente altruísta que ele está escrevendo sua obra. Mas de que serve um tratado na forma de uma inferência para os outros se os outros não existem? Se a alteridade é ilusória, qual é o sentido do altruísmo? Quem resta para instruir se Utpaladeva já sabe o que vai dizer? E com quem dialogar, se não consigo mesmo? Dada a tese a ser demonstrada, há algo misterioso sobre o objetivo soteriológico do tratado, que é declarado desde o início por seu autor.