“Vê, meu filho, quantos corpos devemos atravessar, quantos coros de daimons, e que sucessão contínua e cursos das estrelas, a fim de nos apressarmos em direção ao Único”, assim Hermes se expressa ao se dirigir a seu discípulo Tât1, convidando-o para uma ascensão, cujo fim coincide com o proposto por Hayy ibn Yaqzan a seu seguidor. Ao nos referirmos ao Corpus Hermeticum, não estamos de forma alguma buscando definir as origens “históricas” do motivo da Ascensão celestial, seja em geral ou no mundo espiritual do Islã; trata-se de um arquétipo cujas múltiplas exemplificações, em todas as esferas da história das religiões, ocorrem e se reproduzem em virtude de uma necessidade mais profunda do que aquela que a causalidade histórica é chamada a explicar. A necessidade de um arquétipo significa algo bem diferente da propagação de um “lugar comum”. No misticismo especulativo do Islã, essa exemplificação assumirá prontamente a forma de um tawil da ascensão celestial do Profeta (mi’râj); isso por si só pressuporá o esquema cosmológico cujos dados essenciais foram lembrados nos capítulos anteriores. É esse livro de ascensão celestial em persa (Mi’râj-Nâmeh) que é atribuído pela maioria dos manuscritos a Avicena e por alguns a Sohravardi, em cuja obra Hermes personifica precisamente o herói da ascensão mística de esfera em esfera do “Ocidente celestial”. A admoestação acima, extraída do Corpus Hermeticum, aparece espontaneamente em seu lugar aqui, como um dos muitos testemunhos da mesma visão (testemunhos que obviamente não podem ser listados aqui; para um relato geral, veja acima de tudo W. Bousset, Die Himmelsreise der Seele, em Archiv für Reügionswissenschaft, m. Band (1900), pp. 136-169, 229-273; compare Mircea Eliade, Traité d’histoire des religions, Paris 1949, pp. 96-101, sobre os mitos da ascensão e o simbolismo da ascensão).
É improvável que o Mi’râj-Nâmeh que estamos prestes a analisar seja o trabalho de Sohravardi; é igualmente improvável que seja o trabalho de Avicena (já que o Sr. Gh.-H. Sadîqî está preparando uma edição desse texto para a Collection du Millénaire, não precisamos antecipar aqui os argumentos que ele pretende desenvolver em seu prefácio. Deve-se observar que a atribuição tradicional a Avicena ainda é atestada no último Dabestân al-Madhâhib, que reproduz o texto. Shahrazôrî atribui um Mi’râj-Nâmeh a Sohravardi; estaria ele se referindo ao nosso tratado? O Majmû’a 992 persa da Bibl. Nat. Ferdowsî (Teerã), datado de 659 h., que reproduz o tratado (menos o longo prólogo ao qual nos referimos no texto), atribui-o nominalmente a Sohravardi (fls. 22 e seguintes), embora seja um livro composto naquela época. No entanto, o ensinamento espiritual é de considerável interesse. Como todos os tratados que desenvolveram o mesmo tema, ele apresenta o plano para a jornada celestial da alma à medida que ela ascende de volta à sua terra natal original. É a mesma “rota” que o Relato Aviceniano do Pássaro seguirá, e é por essa razão que devemos mencionar aqui esse Mi’râj-Nâmeh, seja ou não obra de Avicena. Pois o Relato do Pássaro, como uma realização mental da viagem ao Oriente, para a qual o Relato de Hayy ibn Yaqzan nos convida em conclusão, está eo ipso em conexão com toda a literatura desenvolvida em torno do Mi’râj.
O verdadeiro significado dessa conexão deve ficar imediatamente claro. Se Avicena escreveu seu próprio “Mi’râj-Nâmeh”, este seria precisamente seu Relato do Pássaro; assim como o Mi’râj-Nâmeh de Sohravardi é seu Relato do Exílio Ocidental. Em outras palavras, ambas as histórias testemunham o fato de que seus narradores, cada um na medida de sua própria experiência espiritual, reproduziram o caso do Profeta, revivendo para si mesmos e por meio de si mesmos a condição espiritual exemplar tipificada pelo Mi’râj. Ao vivenciar isso, por sua vez, eles cumpriram o tawil, a exegesis de sua alma. Por outro lado, escrever um comentário ao lado do Mi’râj pessoal do Profeta, até mesmo um tawil desse Mi’râj, ainda é permanecer na posição de comentarista; por mais inteligente que seja, o comentarista puro não escreverá uma Narrativa do Pássaro na primeira pessoa (cf. acima, p. 43). Essa é a situação na qual o penetrante comentarista do Mi’râj-Nâmeh, resumido abaixo, se encontraria se ele ainda não tivesse previsto a transição para o “hikâyat”, o “relato” pessoal.
Sem esse horizonte, a situação seria exatamente a dos próprios comentaristas de Avicena e Sohravardi sobre os Relatos. Seu engenhoso tawil é meramente uma exegese dos textos sem uma exegese da alma. Ele nos leva para trás, para baixo, para os dados teóricos que precederam a visão; “explicam” a visão mostrando “o que ela significa”, mas sem ver ou nos fazer ver o que vê. Como resultado, a própria visão desaparece; seu aspecto plástico, correspondente aos pressentimentos mais secretos da alma, é destruído; o símbolo se torna supérfluo e, ao mesmo tempo, é degradado em alegoria. Agora, o interesse experimental dos Relatos de Avicena reside no fato de que, de repente, a trama da evidência conceitual e do discurso especulativo é rompida, e há um encontro face a face de uma pessoa, um encontro que só ocorreu ainda no pressentimento e no desejo ardente que o solicita, mas que também já o experimenta. Para que o autor de uma narrativa de “ascensão celestial” possa proclamar no final: “Sou eu que estou neste Relato” — ou, como Avicena, no final do Relato do Pássaro, envolver-se em humor por modéstia —, o caso do Profeta em seu Mi’râj deve ter sido apresentado não como um simples caso histórico, por mais histórico que tenha sido, mas como um caso exemplar que o místico teve de reproduzir. Isso pressupõe uma aproximação cada vez maior desse valor arquetípico. [CorbinAvicena]
Corpus hermeticum iv 8, ed. Nock-Festugière, I, p. 52; cf. ibid, p. 56, paralelos mandeanos e o “salmo da alma” dos naassenos; compare W. Scott, Hermetica n, pp. 148-149 ↩