Denis Rougemont — O Amor e o Ocidente
EROS OU O DESEJO SEM FIM (Platonismo, druidismo, maniqueísmo)
Em Fedro e O Banquete, Platão fala de um furor que vai do corpo à alma para perturbá-la com humores malignos. Não é o amor que ele louva. Mas há outra espécie de furor, ou de delírio, que não se engendra sem a intervenção de alguma divindade, nem se cria na alma a partir de nós mesmos: é uma inspiração inteiramente estranha, uma atração que age externamente, um arrebatamento, um rapto indefinido da razão e do sentido natural. Será chamado, a justo título, entusiasmo, que significa, “endeusamento”, pois esse delírio procede da divindade e nos impulsiona para Deus.
Tal é o amor platônico: “delírio divino”, arrebatamento da alma, loucura e suprema razão. Por conseguinte, o amante está junto do ser amado “como no céu”, pois o amor é a vida que ascende por degraus de êxtase para a origem única de tudo o que existe, longe dos corpos e da matéria, longe do que divide e distingue, para além da infelicidade de ser o que se é e de ser dois no próprio amor.
Eros é o Desejo total, é a Aspiração luminosa, o impulso religioso original elevado à sua mais alta potência, à extrema exigência de pureza que é extrema exigência de Unidade. Mas a unidade última é a negação do ser atual em sua sofredora multiplicidade. Assim, o impulso supremo do desejo conduz àquilo que é o não-desejo. A dialética de Eros introduz na vida algo totalmente estranho aos ritmos da atração sexual, um desejo que não decresce jamais, que nada mais pode satisfazer, que até mesmo desdenha e foge à tentação de se realizar em nosso mundo, porque só deseja abraçar o Todo. E a superação infinita, a ascensão do homem para o seu deus. E esse movimento é sem retorno.
As origens iranianas e órficas do platonismo são ainda mal conhecidas, mas indubitáveis. E, por intermédio de Plotino e do Areopagita, essa doutrina foi transmitida ao mundo medieval. Assim, o Oriente veio povoar nossos sonhos, despertando lembranças muito antigas.
Porque do fundo do nosso Ocidente a voz dos bardos celtas lhe respondia. Não sei se era um eco, talvez um harmonia ancestral — todas as nossas raças vieram ou voltaram do Oriente Médio — ou simplesmente se a natureza humana nem sempre é levada, em todos os lugares e épocas, a divinizar seu Desejo através de formas sempre semelhantes. Não sei quanto vale a hipótese que assemelha até nos pormenores os mais antigos mitos celtas aos dos gregos — a busca do Graal à do Tosão de Ouro — assim como as doutrinas de Pitágoras sobre a transmigração das almas às dos druidas sobre a imortalidade. A mitologia comparada é a mais perigosa das ciências, se excetuarmos a etimologia, da qual muitas vezes ela se origina: uma e outra estão sempre à mercê do trocadilho mais tentador… Seja como for, alguns pontos de convergência se destacam nos trabalhos recentes, reforçando a hipótese de uma comunidade original das crenças religiosas no Oriente e no Ocidente.
Muito antes de Roma, os celtas haviam conquistado grande parte da Europa atual. Vindos do sudoeste da Germânia e do nordeste da França, tinham saqueado Roma e Delfos e submetido todos os povos do Atlântico ao Mar Negro. Chegaram a atingir a Ucrânia e a Asia Menor (gálatas), prefigurando com muita exatidão a extensão do Império Romano — menos as penínsulas italiana e grega.
Ora, os celtas não formavam uma nação. Não tinham outra “unidade” senão aquela de uma civilização, cujo princípio espiritual era mantido pelo colégio sacerdotal dos druidas. Esse colégio, por sua vez, não era de modo algum a emanação dos pequenos povos ou tribos, e sim “uma instituição de certo modo internacional”, comum a todos os povos de origem celta, dos confins da Bretanha e da Irlanda até a Itália e a Ásia Menor. As viagens e os encontros dos druidas “cimentavam a união dos povos celtas e o sentimento de seu parentesco. Os druidas formavam confrarias religiosas dotadas de poderes muito amplos. Eram simultaneamente adivinhos, mágicos, médicos, padres, confessores. Não escreviam livros, mas ministravam um ensino oral, em versos gnômicos, a alunos que permaneciam sob sua guarda durante vinte anos.
Foi possível relacionar esse colégio sacerdotal com instituições inteiramente idênticas de outros povos indo-europeus: magos iranianos, brâmanes da Índia, pontífices e flâmines de Roma. O flamen e o brâmane utilizam, aliás, o mesmo nome.
É certo que os celtas acreditavam numa vida além da morte. Vida aventurosa, muito semelhante à da Terra, mas depurada e de onde certos heróis podiam regressar, com outros nomes, para se reunirem aos vivos. Através dessa doutrina central da sobrevivência das almas, os celtas se assemelham aos gregos. Mas toda doutrina da imortalidade supõe uma preocupação trágica com a morte… Os celtas”, escreve Hubert, “cultivaram certamente a metafísica da morte… Sonharam muito a respeito da morte. Era uma companhia familiar, cujo caráter inquietante eles se compraziam em disfarçar”. Da mesma forma, em sua mitologia, “a idéia da morte domina tudo e tudo a descobre”. E isso não deixa de incitar aproximações bastante precisas com o que dissemos anteriormente a propósito do mito de Tristão, que simultaneamente dissimula e exprime o desejo de morte.
Por outro lado, os deuses celtas formam duas séries opostas: deuses luminosos e deuses sombrios. Creio que é importante destacar o dualismo fundamental da religião dos druidas. Pois é o que revela a convergência dos mitos iranianos, gnósticos e hinduístas com a religião fundamental da Europa. Da índia às margens do Atlântico, encontramos expresso nas mais diversas formas esse mesmo mistério do Dia e da Noite e de sua luta mortal no homem. Há um deus da Luz incriada, intemporal, e um deus das Trevas, autor do mal, que domina toda a Criação visível. Alguns séculos antes da aparição de Manes, podemos perceber a mesma oposição nas mitologias indo-européias. Deuses luminosos: o Aura-Mazda (ou Ormuz) dos iranianos, o Apolo grego, o Abelion celtibero. Deuses sombrios: o Dyaus Pitar hindu, o Ahriman iraniano, o Júpiter latino, o Dispater gaulês…
Muitos outros paralelismos nos tentam, um dos quais, pelo menos, interessa diretamente ao tema deste livro: a concepção da mulher entre os celtas não deixa de lembrar a dialética platônica do Amor.
Para os druidas, a mulher representa um ser divino e profético. É a Véleda dos Mártires, o fantasma luminoso que surge na visão do general romano perdido em seu devaneio noturno: “Sabes que sou fada?”, diz ela. Eros revestiu a aparência da Mulher, símbolo do além e dessa nostalgia que faz com que desprezemos as alegrias terrestres. Mas trata-se de um símbolo equívoco, pois tende a confundir a atração do sexo e o Desejo sem fim. A Essylt das lendas sagradas, “objeto de contemplação, espetáculo misterioso”, era o convite ao desejo do que está além das formas encarnadas. Mas ela é bela e desejável em si… E, contudo, sua natureza é fugidia. “O Eterno feminino nos arrasta”, dirá Goethe. E Novalis: “A mulher é a finalidade do homem.”
Assim, a aspiração à luz toma por símbolo a atração noturna dos sexos. O grande Dia incriado, aos olhos da carne, é apenas a Noite. Mas nosso dia, aos olhos do deus que habita muito além das estrelas, é o reino do Dispater, o pai das Sombras. E, da mesma forma, o Tristão de Wagner deseja “perecer”, mas para renascer num céu de Luz. A “Noite” que ele canta é o Dia incriado. E sua paixão é o culto de Eros, o Desejo que despreza Vénus, mesmo quando sente volúpia, mesmo quando acredita amar um ser…
Fala-se muito em nirvana e budismo a propósito da ópera wagneriana. Como se o substrato pagão do Ocidente não pudesse ter fornecido ao mago os elementos mais ativos de seu filtro! E espantoso constatar, aliás, até que ponto as origens celtas da Europa sobreviveram à conquista romana e às invasões germânicas. “Os galo-romanos permaneceram em grande parte celtas disfarçados. De tal modo que, após as invasões germânicas, observou-se na Gália o reaparecimento de costumes e gestos que tinham sido os dos celtas. A arte romana e as línguas romanas atestam a importância da herança celta. Quem mais tarde evangelizou a Europa e a chamou para o culto das letras foram os monges da Irlanda e da Bretanha — últimos refúgios das lendas bárdicas, conservadas justamente pelos clérigos. E isso nos conduz aos primórdios da época em que nosso mito se formou…
Entretanto, mais perto de nós do que Platão e os druidas, uma espécie de unidade do mundo indo-europeu se delineia como em filigrana no pano de fundo das heresias da Idade Média. Se considerarmos o domínio geográfico e histórico que vai da índia à Bretanha, verificaremos que, a partir do terceiro século de nossa era, uma religião se propagou, de um lado ao outro, de uma maneira a bem dizer subterrânea, promovendo o sincretismo do conjunto de mitos do Dia e da Noite, tal como haviam sido elaborados, primeiro na Pérsia, depois nas seitas gnósticas e órficas: referimo-nos à crença maniqueísta.
As próprias dificuldades que encontramos atualmente para definir esta religião servem, ao menos, para que nos demos conta de sua natureza profunda e de seu alcance humano.
Inicialmente, foi perseguida por toda parte, com uma violência sem precedentes, pelos poderes ou pelas ortodoxias. Simulou-se ver nela a pior ameaça social. Seus adeptos foram massacrados e seus escritos dispersos e queimados. De tal modo que até hoje tem sido julgada com base em depoimentos que emanam quase exclusivamente de seus adversários. Em seguida, parece que a doutrina de Manes (que era originária do Irã) assumiu, de acordo com os povos e suas crenças, formas muito diversas, às vezes cristãs, às vezes budistas ou muçulmanas. Num hino maniqueísta, recentemente encontrado e traduzido, são invocados e sucessivamente louvados Jesus, Manes, Ormuz, Sáquia-Muni, e, por fim, Zarhust (Zaratustra ou Zoroastro). Por outro lado, é lícito pensar que as sobrevivências celtas na região sul do Languedoc ofereceram um terreno especialmente favorável a algumas seitas maniqueístas.
Para as argumentações que se seguirão, dois fatos, sobretudo, devem ser retidos:
1. — O dogma fundamental de todas as seitas maniqueístas é a natureza divina ou angelical da alma, prisioneira das formas criadas e da noite da matéria.
Vindo da luz e dos deuses
Eis-me em exílio e separado deles.
Eu sou um deus, de deuses nascido
Mas agora ao sofrimento reduzido.
Assim se lamenta o Eu espiritual de um discípulo do salvador Manes no hino do Destino da alma.
O impulso da alma (psyche) para a luz phos) não deixa de evocar, por um lado, a “reminiscência do Belo (kallos)”, da qual falam os diálogos platônicos e, por outro, a nostalgia do herói celta regressado do Céu à Terra, ao lembrar-se da ilha dos imortais. Mas esse impulso é continuamente entravado pelo ciúme de Vénus (Dibat no primeiro hino citado), que deseja reter na sombria matéria o amante, presa do luminoso Desejo. Tal é o combate entre o amor sexual e o Amor que exprime a angústia fundamental dos anjos caídos em corpos demasiado humanos. ..
2. — É muito importante e significativo observar que a estrutura da crença maniqueísta “é essencialmente lírica”. Dito de outra forma, é da natureza profunda desta crença recusar-se a qualquer exposição racionalista, impessoal e “objetiva”. Na verdade, ela só se realiza numa experiência ao mesmo tempo angustiada e entusiástica (no sentido literal do termo), de ordem essencialmente poética. “A ‘verdade’ da cosmogonia e da teogonia só aparece, só se constitui na certeza atestada pelo recitativo do salmo.”
E lembramo-nos do segredo de Tristão, segredo que ele não pode “dizer”, mas somente cantar…
Toda concepção dualista, maniqueísta, vê na vida dos corpos a própria infelicidade; e na morte, o bem derradeiro, o resgate da culpa de ter nascido, a reintegração no Uno e na luminosa indistinção. No mundo, por uma ascensão gradual, pela morte progressiva e voluntária que representa a ascese (aspecto negativo dá iluminação), podemos dar à Luz. Mas o fim do espírito, seu propósito, é também o fim da vida limitada, obscurecida pela multiplicidade imediata. Eros, nosso Desejo supremo, só exalta nossos desejos para sacrificá-los. A realização do Amor nega todo amor terrestre. E sua Felicidade nega toda felicidade terrestre. Considerado do ponto de vista da vida, tal Amor só poderia ser uma infelicidade total.
Este é o grande fundo do paganismo oriental-ocidental, sobre o qual nosso mito se destaca.
Mas por que, justamente, ele se “destaca”? Qual ameaça, qual interdição obrigou a doutrina a dissimular-se, a afirmar-se apenas através de símbolos enganadores — a seduzir-nos apenas pelo encanto e o sortilégio secreto de um mito?
ÁGAPE OU O AMOR CRISTÃO
Prólogo do Evangelho de São João:
No princípio era o verbo, e o verbo estava com deus, e o verbo era Deus… Nele estava a Vida, e a vida era a luz dos homens… A luz resplandece nas trevas e as trevas não a receberam. (I 1-5.)
Acaso trata-se ainda do dualismo eterno, sem remissão, da irrevogável hostilidade da Noite Terrestre e do Dia Transcendente? Não, pois aqui está a continuação do trecho:
E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade; e vimos a sua glória, uma glória como a do fllho único vindo do Pai. (I,14-15.)
A encarnação do Verbo no mundo — da luz nas Trevas — tal é o acontecimento inaudito que nos liberta da infelicidade de viver. Tal é o centro de todo o cristianismo e o fulcro do amor cristão a que as Escrituras chamam ágape.
Acontecimento sem precedente e “naturalmente” inacreditável. Porque a Encarnação é a negação radical de toda espécie de religião. É o supremo escândalo, não apenas para nossa razão, que não admite absolutamente essa inconcebível confusão do infinito e do finito, mas, sobretudo, para o espírito religioso natural.
Todas as religiões conhecidas tendem a sublimar o homem e terminam por condenar sua vida “finita”. O deus Eros exalta e sublima nossos desejos, congregando-os num Desejo único que finalmente os nega. A finalidade última desta dialética é a negação da vida, a morte do corpo. Como a Noite e o Dia são incompatíveis, o homem crê que pertence à Noite, só pode encontrar a salvação deixando deier, “perdendo-se” no seio da divindade. Mas, em virtude do dogma da encarnação do Cristo em Jesus, o cristianismo subverte completamente essa dialética.
Em vez de termo último, a morte torna-se a condição primeira. O que o Evangelho chama de “morte para si mesmo” é o começo de uma vida nova, já no mundo terreno. Não é a fuga do espírito para fora do mundo, mas o seu pleno regresso ao seio do mundo! Uma recriação imediata. Uma reafirmação da vida, certamente não da vida antiga nem da vida ideal, mas da vida presente que o Espírito recupera.
Deus — o verdadeiro Deus — fez-se homem e verdadeiro homem. Na pessoa de Jesus Cristo, as trevas “receberam” verdadeiramente a luz. E todo homem nascido de mulher que creia nisso renasce do espírito a partir de agora: morto para si mesmo e morto para o mundo, pois que o eu e o mundo são pecadores, mas restituído a si mesmo e ao mundo, pois que o Espírito quer salvá-los.
A partir de agora, o amor já não será fuga e recusa perpétua do ato. Ele começa além da morte, mas volta-se para a vida. E essa conversão do amor faz aparecer o próximo.
Para Eros, a criatura era apenas um pretexto ilusório, um motivo para inflamar-se; e era preciso desembaraçar-se imediatamente dela, pois sua finalidade era arder cada vez mais até morrer! O ser particular era apenas um defeito e um obscurecimento do Ser único. Como amá-lo verdadeiramente, tal como era? Visto que a salvação estava no além, o homem religioso afastava-se das criaturas ignoradas por seu deus. Mas o Deus dos cristãos — e somente ele entre todos os deuses que conhecemos — não se afastou. Muito ao contrário: “Ele nos amou primeiro” em nossa forma e nossas limitações. Ele chegou ao ponto de revesti-las. E revestindo a condição do homem pecador e isolado, embora sem pecar e sem separar-se, o Amor de Deus abriu uma via radicalmente nova para nós: a da santificação. Isto é: o contrário da sublimação, que não passa de fuga ilusória para além do concreto da vida.
Amar torna-se agora uma ação positiva, uma ação transformadora. Eros buscava a superação no infinito. O amor cristão é a obediência no presente. Porque amar a Deus é obedecer a Deus, que nos ordenou amar uns aos outros.
Que significa: Amai vossos inimigos? Estas palavras exprimem o abandono do egoísmo, do eu de desejo e angústia; a morte do homem isolado, mas também o nascimento do próximo. Àqueles que ironicamente lhe perguntavam: “Quem é o meu próximo?”, Jesus respondia: “É o homem que precisa de vós.”
A partir deste instante, todas as relações humanas mudam de sentido.
O novo símbolo do Amor já não é a paixão infinita da alma em busca de luz, mas o casamento entre Cristo e a Igreja.
O próprio amor humano se encontra assim transformado. Enquanto os místicos pagãos o sublimavam até torná-lo um deus e simultaneamente o consagravam à morte, o cristianismo o restitui à sua ordem e então o santifica pelo casamento.
Tal amor, concebido à imagem do amor do Cristo por sua Igreja (Efésios, V, 25), pode ser verdadeiramente recíproco. Isto porque ele ama o outro tal como ele é — em vez de amar a idéia do amor ou seu mortal e delicioso ardor. (“É melhor casar do que viver abrasado”, escreve São Paulo aos Coríntios.) Além do mais, é um amor feliz — malgrado os entraves do pecado —, pois conhece a partir da vida terrena, na obediência, a plenitude de sua ordem.
O dualismo do Dia e da Noite, levado à sua lógica extrema, conduziria, do ponto de vista da vida, à infelicidade absoluta que é a morte. O cristianismo só é uma infelicidade mortal para o homem separado de Deus, mas uma infelicidade recriadora e bem-aventurada, a partir da vida terrena, para o crente que “alcança a salvação”.