Frithjof Schuon — CONCUPISCÊNCIA
VIDE epithymia
O ESOTERISMO COMO PRINCÍPIO E COMO VIA
-Amando-se, Adão e Eva amavam Deus; não podiam nem amar, nem conhecer fora de Deus e por eles mesmos, sendo conhecidos como fenômenos separados e não como teofanias. Esse novo gênero de amor foi a concupiscência e esse novo gênero de conhecimento foi a profanidade. Daí em diante, o homem olhava, por um lado, as coisas na sua fenomenalidade isolada e bruta, e, por outro, tornara-se insaciável, homo faber, construtor e produtor. Todavia, trabalhava ainda sob inspiração divina — não há invenções primordiais —, pois se reconciliara com Deus e a invenção propriamente dita estava reservada a fases posteriores à queda. Aliás, o perigo de produtividade prometéica ou titânica explica a proibição de imagens entre os semitas monoteístas, de origem nômade, que tendem a manter o homem numa espécie de improdutividade próxima à simplicidade primordial. Os símbolos bíblicos do “pecado criador” são a torre de Babel e o bezerro de ouro.
-“E eles viram que estavam nus”: sua inteligência, sua vontade, assim como sua maneira de sentir tinham se exteriorizado. E por esse motivo, seu amor tinha se afastado da essência divina das coisas, transmudando-se em concupiscência. Os reflexos do divino Sol na água da Existência foram tomados pelo Sol, esquecendo-se de que não passavam de reflexos e envergonhando-se das consequências humilhantes desse erro. Se no simbolismo bíblico e corânico as partes sexuais evocam vergonha e humilhação, é porque lembram ao homem a paixão cega e deífuga, indigna do homem por arrebatar sua inteligência e sua vontade. Mas, evidentemente, essa perspectiva moral não resume toda a verdade, e o simbolismo positivo da nuditas sacra é muito mais profundo. Ele evoca, por um lado, a semidivindade do homem primordial e, por outro, quer nos reconduzir da acidentalidade, diversa e exterior, para a substancialidade, simples e interior. Não obstante, a Bíblia não censura a nudez de Adão e Eva; constata que se aperceberam disso com vergonha, fato relacionado com a queda, mas não com a nudez em si.
-A perda da Revelação interior ou do olho do Coração indica que o Éden foi perdido após um pecado de exterioridade ou de exteriorização, como já observamos anteriormente, pois a perda da Interioridade e de sua Paz constitui prova de movimento ilegítimo para a exterioridade e de queda na paixão. Eva e Adão cederam à tentação da “curiosidade cósmica”, isto é, quiseram conhecer e experimentar as coisas do mundo exterior fora de Deus e independentemente da Luz interior. E em vez de se contentar com a visão simples, sintética e simbolista das coisas, mergulharam numa percepção ao mesmo tempo exploradora e concupiscente. Embrenharam-se, assim, num caminho sem fim e sem saída que, no entanto, é como o reflexo inverso da Infinidade interior. E o caminho do exílio, do sofrimento e da morte; todos os erros e todos os pecados nos fazem lembrar a primeira transgressão e conduzem a esse caminho incessantemente renovado. 0 pecado do espírito ou da vontade é sempre o reflexo do primeiro erro, ao passo que a Religião — ou a Sabedoria — é, pelo contrário, o reflexo do Paraíso perdido e o renova no próprio interior do mundo de dissonâncias que brota do fruto proibido.
-Segundo o Islamismo, a vestimenta é uma revelação divina, o que coincide com a narração bíblica; “e a vestimenta do temor a Deus é melhor”, acrescenta, no entanto, o Corão. Isso quer dizer que a consciência do Divino protege melhor que a vestimenta contra a concupiscência deífuga, ideia que evoca o princípio do nudismo sacral, de que todas as religiões oferecem, aliás, pelo menos alguns exemplos.
-O desapego é o oposto da concupiscência e da avidez. É a grandeza de alma que, inspirada pela consciência dos valores absolutos e, portanto, também da imperfeição e da impermanência dos valores relativos, possibilita à alma a conservação da sua liberdade interior e da sua distância em relação às coisas. A consciência de Deus anula, de certo modo, as formas e as qualidades por um lado e, por outro, lhes confere um valor que as sublima. O desapego faz com que a alma seja como que impregnada pela morte mas, também, em compensação, que tenha consciência da indestrutibilidade das belezas terrestres. Pois a beleza não pode ser destruída; ela se refugia nos seus arquétipos e na sua essência, ou renasce, imortal, na bem-aventurada proximidade de Deus.
-Quando a Igreja ensina que Maria foi “concebida sem pecado”, refere-se ao fato de sua alma ter sido criada sem a mácula do pecado original. Mas muitos fiéis não-instruídos creem que esse atributo se refere à maneira extraordinária da sua concepção, realizada sem a união carnal dos seus pais — segundo uma tradição — ou, pelo menos, sem desejo nem prazer na união, portanto sem “concupiscência”. Se essa interpretação não é teológica, sua existência não deixa de ser significativa, pois tal sentimento é típico da perspectiva cristã.
-O problema de saber qual o detalhe que se opõe à autenticidade de uma aparição celeste é função ou da natureza das coisas ou de determinada perspectiva religiosa ou de certo nível dessa perspectiva. Isto significa que existem elementos que, por si mesmos e de qualquer ponto de vista religioso ou espiritual, são incompatíveis com as aparições celestes, ao passo que há outros que o são no campo de determinada perspectiva ou ponto de vista espiritual. Segundo a criteriologia católica, por exemplo, a nudez total está excluída para os mensageiros do Céu,38 ao passo que no Hinduísmo tem caráter indiferente ou positivo. A razão da atitude católica é que o Céu não pode querer nem excitar a concupiscência, nem prejudicar o pudor — mas, mesmo em âmbito cristão, existe aí uma margem —, ao passo que a atitude hindu se explica pelo caráter sagrado da nudez, fundamentado no teomorfismo do corpo, portanto, de certa forma, na sua “divindade humana”. Neste caso, a transparência metafísica compensa a ambiguidade carnal que, aliás, é considerada coisa natural e não-pecado, tanto pelos lundus como pelos muçulmanos. Quanto às dissonâncias intrínsecas incompatíveis com uma manifestação celeste, existem inicialmente — e com toda evidência — os elementos de fealdade e os detalhes grotescos, não apenas em forma de aparição, como também nos seus movimentos e mesmo, simplesmente, no ambiente. Segue-se o discurso do duplo ponto de vista do conteúdo e do estilo, pois o Céu não mente nem fala mal.40 “Deus é belo e Ele ama a beleza”, disse o Profeta; amando a beleza, Deus ama igualmente a dignidade, Ele que combina a beleza (jamâl) com a majestade (jalâl). “Deus é amor”, e o amor exclui, senão a cólera santa, certamente, pelo menos, a fealdade e a mesquinhez.