O exemplo mais próximo e, portanto, mais evidente do que denominamos “esoterismo relativo” nos é fornecido pelo Cristianismo: ao passo que no Judaísmo e no Islamismo a mensagem direta é exotérica — constituindo o esoterismo a mensagem indireta por ser universal e, consequentemente, supraformal —, no Cristianismo é relativamente esotérica em sua própria mensagem direta. É esotérica não em relação a um teísmo personalista e a um voluntarismo individualista — pois aí está o seu próprio ponto de vista geral —, mas em relação ao formalismo moralista é ritualista do Judaísmo. Isto quer dizer que é esotérica no âmbito do legalismo judeu, como o é o vishnuísmo bháktico no âmbito do hinduísmo formalista e horizontal. A ideia inicial de Cristo — caso seja possível assim nos expressarmos — é, com efeito, a de que a razão de ser da ação piedosa é a piedade da intenção e que, na ausência dessa piedade, a ação deixa de ser piedosa. É preferível realizar a piedade interior a concretizar sem o amor de Deus nem o do próximo, e até por hipocrisia, as manifestações ou os alicerces exteriores dessa piedade, pois esta tem justamente toda a sua razão suficiente no amor de Deus.
O esoterismo de bhakti ultrapassa as formas exteriores, isto é, as prescrições, assim como o esoterismo da gnose, o jnâna, ultrapassa as formas interiores, isto é, os dogmas antropomorfistas e as atitudes individualistas e sentimentais que a ele se referem. Entretanto, todo esoterismo precisa de fundamentos doutrinais, rituais e morais, sem esquecer os fundamentos estéticos relacionados com a contemplatividade. Quem diz homem diz forma; o homem é a ponte entre a forma e a essência, ou entre a “carne” e o “espírito”.
Quando se fala em esoterismo cristão, só pode tratar-se de três coisas: primeiramente, da gnose cristã, baseada na pessoa, no ensinamento e nos dons de Cristo, e aproveitando-se eventualmente dos conceitos platônicos, o que em metafísica nada tem de irregular. 19 Esta gnose manifestou-se principalmente, embora de forma bastante desigual, em escritos como os de Clemente de Alexandria, de Orígenes, de Dionísio, o Areopagita, — ou o Teólogo ou o Místico, se preferirem — Scotus Erigena, Mestre Eckhart, Nicolau de Cusa, Jacob Boehme, Angelus Silesius.20 Em seguida, pode tratar-se de algo completamente diferente, isto é, do esoterismo greco-latino — ou do Oriente Próximo — incorporado ao Cristianismo: pensamos aqui, sobretudo, no hermetismo e nas iniciações artesanais. Neste caso, o esoterismo é relativamente limitado ou mesmo fragmentário, e consiste mais no caráter sapiencial do método — hoje perdido — do que na doutrina é na finalidade. A doutrina era, sobretudo, cosmológica e, consequentemente, a finalidade não ia além dos “pequenos mistérios” ou da perfeição horizontal, ou “primordial”, se nos referirmos às condições ideais da “idade de ouro”. Seja como for, esse esoterismo cosmológico ou alquímico e “humanista” em sentido ainda legítimo — pois se tratava de devolver ao microcosmo humano a perfeição do macrocosmo, sempre semelhante a Deus —, esse esoterismo cosmológico cristianizado, digamos, foi essencialmente vocacional, visto que nenhuma ciência, nenhuma arte podem impor-se a todos; o homem escolhe uma ciência ou uma arte por razões de afinidade e de qualificação, e não a priori, para salvar a própria alma. Estando a salvação garantida pela religião, o homem pode a posteriori, e por essa mesma razão, valorizar os seus dons e ocupações profissionais; e é normal mesmo ou necessário que o faça quando uma ocupação vinculada a um esoterismo alquímico ou artesanal se lhe impõe por qualquer motivo.
Finalmente e, sobretudo, excluindo-se qualquer consideração histórica ou literária, pode-se e deve-se entender por “esoterismo cristão” a verdade pura e simples — metafísica e espiritual — na medida em que ela se exprime ou se manifesta por meio de formas dogmáticas, rituais ou outras do Cristianismo. Ou, formulado em sentido inverso, esse esoterismo é o conjunto dos símbolos cristãos, na medida em que estes exprimem ou manifestam a metafísica pura e a espiritualidade una e universal. E isso independe da questão de se saber até que ponto um Orígenes ou um Clemente de Alexandria tinham consciência daquilo de que se tratava. Questão, aliás, supérflua, visto ser evidente que, por motivos relativamente extrínsecos, eles não podiam ter consciência de todos os aspectos do problema, tanto que foram plenamente solidários da bhakti que determina a perspectiva específica do Cristianismo. Seja como for, convém não confundir o esoterismo de princípio com o esoterismo de fato, ou uma doutrina virtual, que tem todos os direitos da verdade, com uma doutrina efetiva, que, eventualmente, não mantém tudo o que o seu próprio ponto de vista promete.
Em relação ao legalismo judeu, o Cristianismo é esotérico, visto que é uma mensagem de interioridade: para ele, a virtude interior supera a observância exterior a ponto de abolir esta última. Mas, como o ponto de vista é voluntarista, pode ser transcendido por uma nova interioridade, a da pura Intelecção, que faz as formas particulares voltarem às suas essências universais e que substitui o ponto de vista da penitência pelo do conhecimento purificador e libertador. A gnose é de natureza crística no sentido de, por um lado, estar relacionada com o Logos — do Intelecto simultaneamente transcendente e imanente — e de, por outro lado, ser uma mensagem de interioridade, portanto, de interiorização.