Mollâ Sadrâ afirma: “Está estabelecido, portanto, que o homem tem : 1) uma existência na natureza material (physis), e sob esse aspecto ele não é um objeto de intelecção nem mesmo um objeto de percepção sensível; 2) uma existência no sensus communis (hiss moshtarik, em grego koinêstherion) e na imaginação, e sob esse aspecto ele é o objeto da percepção sensível (a imaginação aparece aqui como a condição transcendente que torna possível toda percepção sensível); 3) uma existência na Inteligência, e sob esse aspecto ele é o objeto da intelecção (ma’qûl) (…).) Pois bem! o homem também tem uma existência “imaginal” substancial (wojûd mithâlî), subsistindo por si mesmo no mundo das Imagens “em suspensão” (isto é, não imanente a um substrato), assim como tem um arquétipo inteligível substancial (mithâl ‘aqlî), existindo por si mesmo, no mundo das Inteligências. O mesmo se aplica a cada existente físico entre os existentes físicos. Esse existente tem uma existência tripla: 1) inteligível (‘aqlî), 2) imaginal (mithâlî), 3) material (mâddî).”
Esse conceito também está ligado ao movimento substancial. O homem só alcança a perfeição no mundo imaginário e no mundo inteligível na medida em que se eleva, poderíamos dizer, ontologicamente ao nível de presença que lhe corresponde, e depois de ter passado pelas metamorfoses que o predispõem a isso. O grau de conhecimento é, portanto, uma função do grau de ser: há uma perfeita conformidade entre os modos de inteligência e os modos de ser que lhes correspondem. Não haveria confronto ou dualidade entre o sujeito inteligível e a forma inteligível se considerássemos a alma humana como sendo, desde o início, uma substância separada em ato, possuindo seu intelecto em potência. Mas esse não é o caso, pois a alma humana está longe de desfrutar de tal privilégio desde o início; ela tem que conquistá-lo. Ela deve passar por metamorfoses, por um processo de transformação e por um processo de desenvolvimento. Ela deve passar por metamorfoses a fim de obter seu status pleno como alma humana, de modo que seu modo de ser esteja em conformidade com o objeto que ela intelige. Pois quando a alma assume formas intelectuais, essas formas a metamorfoseiam, e é porque ela se metamorfoseia que a união cognitiva com o nível alcançado é inteligível. Em outras palavras, é tão verdadeiro dizer que, na alma que se metamorfoseia, a Forma inteligível se inteligentiza, quanto dizer que é a alma que é, ela mesma, a Forma que se inteligentiza. A partir de então, as metamorfoses pelas quais a alma passa contam, por assim dizer, sua própria história. “Uma história que, de acordo com a ambivalência da palavra hikâyat (ver Livro IV), é uma imitação, uma reprodução, uma re-citação.
A alma, na “história” de suas mutações, de suas metamorfoses, de sua ascensão, recita a “história” das próprias Formas que recebe em si mesma, assim como essas Formas reproduzem a história da qual a alma é, ela mesma, a narrativa. “Não nos parece exagerado dizer que Mollâ Sadrâ fundou assim rigorosamente uma autêntica fenomenologia da consciência, chamada a elevá-la a uma fenomenologia do Espírito Santo, que é a Inteligência ativa com a qual a alma se une em seu ato de intelecção. E para um filósofo ou teósofo ishraqi, essas são as premissas que devem guiar sua experiência mística.” De fato, em toda intelecção, tanto no nível do sensível quanto no nível do imaginário ou do espiritual, é sempre o mesmo sujeito divino que se intelige. O inteligido em ato (ma’qûl) só pode existir inteligido em ato. Seu ser-em-si é idêntico ao seu estado de inteligibilidade (ma’qûliyat), quer tenha ou não um sujeito inteligível diante de si. Ele é, portanto, tanto o sujeito inteligível (‘aqîl) quanto o objeto inteligível (ma’qûl). O homem que atingiu o nível do imaginal ou do inteligível se permite ser inteligível pela alma ou pela Inteligência que age proporcionalmente ao nível de presença que ele adquiriu; ele se permite recitar a história de suas próprias intelecções. Em outras palavras, a unificação do sujeito inteligível e da forma inteligível está sujeita à lei da unidade que rege os três modos de existência: o modo sensível, o modo imaginal e o modo inteligível.
Mas o estado dessa união unitiva (ittihâd) é adquirido somente após um longo aprendizado e uma metamorfose interior, e há multidões de seres humanos que nunca alcançam nada que se assemelhe a isso. Além disso, Sadra diz que, na origem de sua união com o corpo, a alma é a própria matéria e deve conquistar gradualmente sua separação da matéria, sua imaterialização (tajarrod), sua capacidade de alcançar o limiar de Malakût, de ser, por assim dizer, um ser angelical (malakûtî). Em outras palavras, a alma deve subir de grau em grau de intelecção para finalmente alcançar o nível de unificação com a Inteligência Agente — o Espírito Santo.
É por meio do movimento intrassubstancial que a alma se eleva à imaterialidade do mundo imaginário (tajarrod barzakhî) e à do mundo inteligível (tajarrod ‘aqlî). Pois é a própria condição da alma perceber todas as realidades do mundo inteligível e unir-se a elas; é também sua condição “tornar-se ela mesma seu mundo inteligível (‘alâm ‘aqlî), um mundo no qual existe a forma de todo existente inteligível e a imagem mental de todo existente material”. Assim, conclui Corbin, abre-se uma fenomenologia, não do Espírito em si, mas do Espírito Santo, uma hierohistória autobiográfica daquele que os Ishrâqîyûn chamam de Arcanjo da humanidade, o Senhor da espécie humana (Rabb al-naw’al-insânî), uma história interior puramente visionária, da qual nossos eventos externos são apenas os símbolos, algo como a autobiografia de um arcanjo”.