Não há árvore Bodhi,
nem o cessar do brilho do espelho.
Sendo tudo vazio, onde
poderia assentar o pó?
O que distingue Hui-neng de maneira mais evidente e característica de todos os seus antecessores e contemporâneos é a sua doutrina de “hon-rai mu-ichi-motsu” (pen-lai wu-i-wu). Esta é uma das linhas em que ele se declara contra os versos de Shen-hsiu, a que já nos referimos. A gatha completa composta por Hui-neng é esta:
Não há árvore Bodhi,
nem o cessar do brilho do espelho.
Sendo tudo vazio, onde
poderia assentar o pó?
”Desde o princípio nada é” — eis a primeira proclamação de Hui-neng. Foi como uma bomba atirada ao campo de Shen-hsiu e de seus antecessores. Com isso, o Zen de Hui-neng delineou-se nitidamente contra a prática de meditação zen do tipo limpar-a-poeira. Shen-hsiu não estava propriamente errado em seu ponto de vista, uma vez que há razões para supor que seu próprio mestre, Hun-jen, o 5o Patriarca, que também fora o mestre de Hui-neng, tivesse um ponto de vista semelhante, sem tê-lo no entanto enunciado explicitamente, da forma como o fez Shen-hsiu. Na realidade, o ensino de Hung-jen dava margem a que fosse estruturado tanto à moda de Shen-hsiu como à moda de Hui-neng. Hung-jen foi um grande mestre zen e fez surgir muitas personalidades fortes, que se tornaram grandes condutores espirituais de sua época. Dentre eles, Shen-hsiu e Hui-neng foram os que mais se destacaram, de diversas maneiras, e o campo ficou dividido entre ambos. Shen-hsiu interpretava Hung-jen à sua maneira, o mesmo ocorrendo com Hui-neng; e, como já foi explicado, com o passar do tempo, este último levou a melhor, por afinar mais com o pensamento e a psicologia do povo chinês.
Tudo faz crer que na doutrina de Hung-jen houvesse algo capaz de conduzir aos ensinamentos de Shen-hsiu, pois Hung-jen parece ter ensinado a “vigiar a Mente” todo o tempo. Como continuador de Bodhidharma, com certeza acreditava na Mente que, embora como fonte do universo em toda a sua multiplicidade, permanece em si mesma pura, simples, e iluminadora como o sol por trás das nuvens. “Vigiar a Mente Original” significa mantê-la livre (limpa) das nuvens da individualização que a obscurecem, de modo a permitir que a sua luz pura se conserve intacta e sempre irradiante. Mas, desse ponto de vista, a concepção de Mente e da sua relação com a multiplicidade do mundo não se define com clareza; existe a possibilidade de se fazer confusão acerca desses conceitos.
Se a Mente é originalmente pura e imaculada, por que seria necessário limpá-la da sujeira que vem de lugar nenhum? Essa “limpeza”, que significa o mesmo que “vigia”, não seria um processo injustificável para o praticante do Zen? A limpeza, sem dúvida, é um artifício completamente desnecessário. Se o mundo brota da Mente, por que não deixar que brote à vontade? Tentar interromper essa gestação com práticas de “vigia” da Mente não seria um ato de interferência? A coisa mais lógica e natural a fazer em relação à Mente seria deixá-la continuar com sua criação e sua iluminação.
O ensino de Hung-jen a respeito da vigilância sobre a Mente pode significar, para o praticante, uma vigia sobre seu próprio intelecto individual, a fim de que este não obstrua o caminho da Mente Original. Mas, ao mesmo tempo, existe o perigo de o praticante agir exatamente ao contrário da doutrina da não-interferência. Este é um ponto delicado, e os mestres devem ser absolutamente precisos a seu respeito — não só nos conceitos como nos métodos práticos de treinamento. Pode ser que o mestre tenha uma ideia bem definida daquilo que deseja realizar na mente do discípulo; mas este, na maioria das vezes, deixa de progredir em harmonia com o mestre. Por essa razão, os métodos devem variar não só em função da pessoa, como também em função da idade. E por essa mesma razão, os discípulos se batem pelas diferenças com veemência ainda maior do que os dois mestres, que preferem métodos diferentes.
Shen-hsiu talvez se inclinasse mais ao ensino do processo de vigiar a Mente, de limpar a poeira, do que ao método da não-interferência. Este apresenta perigosas armadilhas aos seus adeptos, pois resulta fundamentalmente da doutrina do Vazio, da não-existência, isto é, da ideia de que “desde o princípio nada é”.
Quando Hui-neng afirmou que “desde o princípio nada é”, a tônica do seu pensamento zen ficou configurada; e ela mesma nos permite ver a diferença entre este mestre e seus antecessores e contemporâneos. Essa tônica jamais fora afirmada de modo tão claro. Quando os mestres seguidores de Hui-neng se referiam à presença da Mente em cada mente individual e à sua pureza absoluta, a ideia de presença e de pureza devia, de algum modo, sugerir a existência de um corpo individual, por mais etéreo e transparente que possa parecer. O resultado seria o de livrar esse corpo da montanha de materiais obscurecedores. Por outro lado, o conceito de Vazio (wu-i-wu), segundo Hui-neng, pode conduzir a um abismo sem fundo, o que sem dúvida originaria um sentimento de total solidão. A filosofia do Prajnaparamita, que é também a de Hui-neng, produz geralmente esse efeito. Para compreendê-la, é necessária uma profunda compreensão religiosa e intelectual da verdade do sunyata. Quando nos é dito que Hui-neng experimentou um despertar ao ouvir o Sutra Vajracchedika (Sutra do Diamante), pertencente ao conjunto Prajnaparamita dos textos Mahayana, logo descobrimos onde ele assenta.
A ideia que prevaleceu até a época de Hui-neng foi a de que a natureza de Buda, da qual todos os seres são dotados, é perfeitamente pura e imaculada quanto a seu Ser-em-si. Cabe ao yogue, portanto, descobrir a sua natureza-própria — a natureza de Buda — em sua pureza original. Mas, como já disse antes, na prática, isso pode levar o yogue a conceber algo de separado que retém a sua pureza por trás de toda a obscuridade absurda que envolve a sua mente individual. Sua meditação poderá redundar numa limpeza do espelho da consciência, na qual ele esperava ver refletida a imagem do seu Ser-em-si original e puro. A isso pode-se chamar de meditação estática. Mas refletir serenamente ou contemplar a pureza da Mente tem um efeito suicida sobre a vida, tendo Hui-neng protestado veementemente contra esse tipo de meditação.
No T’an-ching e em outras obras zen posteriores, encontramos frequentemente o termo k’an-ching, significando “ter um olho na pureza”, sendo esta prática condenada. “Ter um olho na pureza” nada mais é do que uma contemplação quietista da natureza-própria do indivíduo ou do Ser-em-si. Quando o conceito de “pureza original” resulta nessa espécie de meditação, ele se acha em desacordo com a verdadeira compreensão do Zen. O ensino de Shen-hsiu era, sem dúvida, fortemente tingido de quietismo, ou seja, era do tipo reflexão. Portanto, quando Hui-neng declarou que “desde o princípio nada é”, seu enunciado foi original, embora estivesse fundamentalmente enraizado no Prajnaparamita. Na verdade, ele revolucionou a prática da meditação zen, estabelecendo o que era realmente budista e, ao mesmo tempo, preservando o espírito genuíno de Bodhidharma.
Hui-neng e seus seguidores passaram então a usar o termo chien-hsing, em vez do antigo k’an-ching. Chien-hsing significa “ver dentro da natureza (da Mente)”. K’an e chien referem-se ambos ao sentido da visão; mas o ideograma k’an, que consiste numa mão e num olho, significa observar um objeto como algo independente do espectador; o que se vê e o ato de ver são duas coisas distintas. Chien, que consiste num olho sobre duas pernas esticadas, significa o puro ato de ver. Quando reunido a hsing, que significa natureza, essência ou Mente, passa a significar ver dentro da natureza fundamental das coisas — e não observar, como o Purusha Samkhya observa, a dança de Prakriti. A visão não reflete um objeto como se o sujeito que vé nada tivesse a ver com ele. A visão, ao contrário, reúne o sujeito que vê ao objeto visto — não uma mera identificação, mas um ato de tornar-se consciente dela mesma, ou melhor, de seu funcionamento. Ver é um ato que envolve uma concepção dinâmica do Ser-em-si, isto é, da Mente. A distinção feita por Hui-neng entre k’an e chien pode, assim, ser tida como revolucionária na história do pensamento zen.
”Desde o princípio nada é” — essa de fato, é uma proposição que destrói o erro frequentemente ligado à ideia de pureza. Na verdade, pureza significa Vazio (sunyata), negação de todos os predicados; é um estado de absoluta negação, mas de algum modo se presta à criação de uma entidade separada, exterior ao “sujeito que vê”. O fato de se ter empregado a seu respeito o termo k’an prova que o erro era, então, cometido. Quando a ideia de que “desde o princípio nada é” vem substituir a ideia de que “a natureza-própria da Mente é pura e imaculada”, todo o apoio lógico e psicológico de que dispúnhamos antes desaparece sob os nossos pés e já não temos onde pisar. É isso exatamente o que o budista sincero tem de experimentar antes de poder chegar à compreensão da Mente. “Ver” é algo que se segue à falta de chão onde apoiar o pé. Por isso, Hui-neng pode em certo sentido ser considerado o pai do Zen chinês.
É verdade que ele às vezes emprega algumas expressões que lembram o antigo tipo de meditação, como quando fala em “limpar a mente” (ching-hsin) ou que “o Ser-em-si é originalmente puro e imaculado” ou “no sol encoberto pelas nuvens” etc. Mas, ainda assim, é bastante clara a condenação à meditação quietista em toda a sua obra: “Quando te sentas, tranquilamente, com a mente vazia, é o mesmo que despencar “num vazio completo.” E ainda: “Há pessoas que pensam de modo equivocado, achando que nada há de mais elevado do que sentar-se tranquilamente com a mente vazia, sem permitir que pensamento algum surja ali.” Hui-neng aconselha a “não se apegar à noção de Mente, nem à noção de pureza, a não dar importância à ideia de imobilidade”, pois “essas coisas não fazem a nossa meditação”. “Se dás valor à noção de pureza e te prendes a ela, transformas a pureza em algo falso… A pureza não tem forma ou feitio; se buscas algum resultado dando características a uma forma a ser chamada de pureza, obstruis a natureza-própria fundamental de vosso ser e ficas preso à pureza.” Essas passagens mostram-nos como Hui-neng concebe a procura da emancipação final.
Há tantas espécies de prisão quantas formas de apego. Ao nos apegarmos à pureza, nós lhe damos, por esse fato, uma forma, e nos prendemos a ela. Pela mesma razão, ficamos presos à ideia de Vazio, se a ela nos apegarmos. Se nos apegamos a Dhyana ou tranquilização, ficamos presos a Dhyana. Por excelentes que sejam, tais métodos espirituais nos conduzem inevitavelmente a um estado de sujeição, de um modo ou de outro. Não há libertação nisso. Todo o sistema da disciplina zen, pode-se dizer, não é senão uma série de tentativas cuja finalidade é deixar-nos absolutamente livres de qualquer tipo de escravidão. Mesmo quando falamos em “ver dentro de sua natureza-própria”, essa introvisão resultará em prisão se a construirmos com caracteres específicos; isto é, se a visão for um estado de consciência específico. Pois é isso “o que aprisiona”.1
O mestre Shen-hui perguntou a Teng: — Que exercício recomendas para que se veja dentro da natureza-própria?
Teng respondeu: — Antes de mais nada, é preciso praticar a meditação, sentando-se tranquilamente de pernas dobradas. Quando se obtiver completo domínio nesse exercício, o Prajna (conhecimento intuitivo) brotará dele, e por virtude desse Prajna chegar-se-á à visão da sua natureza-própria.
Shen-hui perguntou: — Quando se está ocupado a meditar, não se trata de um exercício especificamente inventado?
Teng: — Sim, trata-se.
Shen-hui: — Se é assim, essa invenção específica é um ato de consciência limitada; como poderia ele conduzir à visão da sua natureza-própria?
Teng: — Para alcançar essa visão, temos de nos exercitar na meditação (dhyana); sem esse exercício, como se poderia chegar a ver a sua natureza-própria?
Shen-hui comentou: — Esse exercício de meditação consiste fundamentalmente numa maneira errônea de ver a verdade; e enquanto assim for, exercícios dessa natureza jamais resultarão em (verdadeira) meditação (dhyana).
Teng explicou: — Quando falo em atingir a meditação exercitando-se nela, quero dizer isso. Quando se alcança a meditação, uma iluminação interior e exterior chega por si à pessoa;e, por causa dessa iluminação interna e externa, vê-se a pureza; e, por ser pura a Mente, chama-se a ela visão da sua natureza-própria.
Shen-hui, contudo, continuou a perguntar: — Quando falamos em ver a natureza-própria não nos referimos a essa natureza como tendo interior e exterior; se você fala de uma iluminação que se dá dentro e fora trata-se de ver o interior de uma mente desencaminhada; como pode ser essa a verdadeira visão da natureza-própria? Diz o Sutra: Se estiveres interessado em dominar toda espécie de Samadhi, isto quer dizer move-te, e não, senta-te em meditação. A Mente se exterioriza ao tomar contacto com o exterior. Como se pode chamar a isso meditação (dhyana)? Se essa espécie de meditação fosse autêntica, Vimalakirti não teria instigado Sariputra ao trabalho quando o encontrou de pernas dobradas, dizendo estar exercitando-se na meditação.
Por meio dessas interrogações críticas, Shen-hui expõe a posição de Teng e de seus adeptos, defensores da pureza; pois eles ainda apresentam traços de apego, isto é, estabelecem um certo estado mental e o tomam por libertação real. Enquanto a visão consistir em algo a ser visto, ela não será a visão real. Só quando o ver é não-ver, isto é, quando a visão não é um ato específico de ver um estado de consciência fundamentalmente restrito, é que ela é “visão da natureza-própria”. Usando um paradoxo: quando o ver é não-ver, essa é a visão real; quando o ouvir é não-ouvir, essa é a audição real. É essa a intuição do Prajnaparamita.
Quando, portanto, a visão da natureza-própria nada tem a ver com um estado de consciência específico, passível de ser lógica ou relativamente definido como alguma coisa, os mestres zen designam-na com termos negativos: não-pensamento ou não-mente, wu-nien ou wu-hsin. Por ser não-pensamento ou não-mente, a visão é realmente visão. Mais adiante, pretendo examinar esse conceito de não-mente (wu-hsin), que é idêntico ao de não-pensamento (wu-rtien)’, por ora, apreciarei com mais detalhes as ideias de pureza, iluminação e natureza-própria, com o propósito de lançar mais luz sobre o pensamento de Hui-neng e focalizá-lo como um dos maiores mestres do Zen chinês. Para isso, citarei ainda os Aforismos de Shen-hui, onde encontraremos esses pontos abordados pelo mais eloquente discípulo de Hui-neng.
Chan-yen King perguntou (a Shen-hui): — Você discorre frequentemente sobre o tema do wu-nien (”não-pensamento” ou “não-consciência”), e faz as pessoas disciplinarem-se nele. Desejo saber se há ou não uma realidade correspondente à noção de wu-nien.
Shen-hui respondeu: — Eu não diria que o wu-nien é uma realidade, nem que não é.
— Por quê?
— Porque, se eu disser que é uma realidade, não será no sentido em que geralmente se fala de realidade; e se eu disser que é uma não-realidade, não será no sentido em que as pessoas geralmente falam de não-realidade. Por isso wu-nien não é real nem não-real.
— Como o chamaria, então?
— Não lhe daria nome algum.
— Se é assim, o que poderia ser?
— Não há uma designação possível. Por isso digo que wu-nien está além do alcance das palavras. A única razão de se falar dele são as perguntas que nos fazem a respeito. Sem essas perguntas, nada se falaria. É como um espelho claro; se diante dele não aparecem os objetos, nada há nele que se possa ver. Se alguém afirma que vê algo nele é porque algo foi posto diante dele.
— Se o espelho nada tem para iluminar,2 a própria iluminação perde o seu sentido, não é verdade?
— Quando falo em objetos frente ao espelho, e na sua iluminação, mostro que essa iluminação é algo eterno, algo que pertence à natureza do espelho; independe da presença ou ausência dos objetos diante dele.
— Diz o senhor que isso não tem forma, que transcende as palavras, e que a noção de realidade ou não-realidade não se lhe pode aplicar; por que, então, fala de iluminação? Que iluminação é essa?
— Falamos em iluminação porque o espelho é brilhante e a iluminação é própria de sua natureza. A mente presente em todas as coisas, sendo pura, contém a luz do Prajna, que ilumina todo o sistema do universo até o seu mais longínquo extremo.
— Sendo assim, quando se pode alcançá-la?.
— Basta ver dentro do nada (tan-chien-wu).
— Mesmo que seja o nada, é ver algo ainda assim.
— Embora se trate de ver, isso não se pode chamar de algo.
— Se não se pode chamar a isso de algo, como pode haver visão?
— Ver dentro do nada — é essa a verdadeira visão e a visão eterna.3
Shen-hui emprega aqui a palavra “iluminação”, em vez de “reflexão”, talvez para realçar o parentesco do espelho (Mente) com a luz (N. do T.). ↩