Nunca se deve considerar o despertar como um feito ou uma realização decorrente de tais esforços. Como não há realização alguma no despertar de Prajna no Inconsciente, esse despertar tampouco persiste. Este é o ponto defendido com maior ênfase em todos os Sutras do Prajnaparamita: nenhuma realização e, portanto, nenhum apego, nenhuma permanência, o que significa permanecer no Inconsciente ou permanecer no não-permanente.
Voltamos aqui à relação entre Prajna e Dhyana. Este é, de fato, um dos temas recorrentes da filosofia budista e não podemos nos afastar dele — especialmente no estudo do Zen. A diferença que existe entre as escolas de Hui-neng e Shen-hsiu é apenas a diferença existente na maneira de encararem essa relação. Shen-hsiu aborda o problema do ponto de vista do Dhyana; Hui-neng defende o Prajna como o que há de mais importante para compreender o Zen. Hui-neng recomenda-nos, antes de mais nada, a “ver” a natureza-própria — o que significa despertar no Inconsciente. Shen-hsiu, por sua vez, aconselha-nos a “sentar-nos em meditação”, de modo que todas as nossas paixões e todos os nossos pensamentos perturbadores possam aquietar-se e a pureza inerente à natureza-própria possa brilhar por si mesma. Essas duas tendências caminharam lado a lado durante toda a história do Zen, provavelmente devido aos dois tipos psicológicos encontráveis em nós: o intuitivo e moral, o intelectual e prático.
Os que dão destaque ao Prajna, como Hui-neng e sua Escola, tendem a identificar Dhyana e Prajna e insistem no despertar abrupto, instantâneo, no Inconsciente. Este despertar no Inconsciente pode ser, logicamente falando, uma contradição; mas como o Zen possui um mundo próprio onde vive a sua própria vida, não dá importância a expressões contraditórias e continua a empregar a fraseologia que lhe é peculiar.
A Escola de Hui-neng faz, portanto, objeções à Escola de Shen-hsiu, pois quem passa o tempo com as pernas dobradas, em meditação, tentando realizar um estado de tranquilidade, persegue certa realização tangível; estes sustentam a doutrina da pureza original, que consideram ser algo intelectualmente demonstrável; são os que têm o olhar fixo num objeto especial que pode ser apreendido entre outros objetos relativos e mostrado aos outros, como quem aponta para a lua. Agarram-se a esse objeto específico como a algo muito precioso, esquecendo que esse apego degrada o valor do objeto amado; pois, por causa disso, esse objeto é nivelado à mesma ordem de existência que a deles; por se agarrarem a ele e nele permanecerem, alimentam um certo estado de consciência definido como se fosse o fim último a atingir; por essa razão, nunca chegam a se emancipar realmente, a cortar o último laço que ainda os prende a este lado da existência.
De acordo com a Escola do Prajna de Hui-neng, Prajna e Dhyana tomam-se idênticos no Inconsciente, pois quando ocorre o despertar no Inconsciente, trata-se de um não-despertar — e o Inconsciente permanece todo o tempo em Dhyana, sereno e imperturbado.
Nunca se deve considerar o despertar como um feito ou uma realização decorrente de tais esforços. Como não há realização alguma no despertar de Prajna no Inconsciente, esse despertar tampouco persiste. Este é o ponto defendido com maior ênfase em todos os Sutras do Prajnaparamita: nenhuma realização e, portanto, nenhum apego, nenhuma permanência, o que significa permanecer no Inconsciente ou permanecer no não-permanente.
Em Ta-chu Hui-hai, encontramos este diálogo:
P. — O que se quer dizer com funcionamento simultâneo da Tríplice Disciplina?
R. — Ser puro e incorrupto é Sila (preceito). Dhyana (meditação) é a mente imóvel, sempre serena em todas as condições. Perceber a mente imóvel e ainda assim não pensar na imobilidade dela; perceber a mente pura e incorrupta e ainda assim não pensar em sua pureza; discriminar o que é mau do que é bom, e ainda assim não sentir pressão alguma proveniente de um ou de outro, e ser um senhor absoluto de si: a isso se chama Prajna. Quando deste modo se percebe que Sila, Dhyana e Prajna estão além do alcance, compreende-se imediatamente que não há discriminação a se fazer entre eles e que eles são um só e o mesmo corpo. Isto é o funcionamento simultâneo da Tríplice Disciplina.
P. — Quando a mente permanece em estado de pureza, não se trata de apego à pureza?
R. — Pode-se permanecer na pureza sem pensar em permanecer nela; diz-se então que não se está apegado a ela.
P. — Quando a mente permanece no Vazio trata-se de apego ao Vazio?
R. — Quando se pensa nessa permanência, existe apego.
P. — Quando a mente permanece na não-permanência, não se trata de apego à não-permanência?
R. — Quando não se alimentam pensamentos sobre o Vazio, não há apego. Se queres saber quando a Mente chega a compreender o momento da não-permanência, senta-te na postura correta de meditação e purifica completamente a tua mente de pensamentos — pensamentos sobre todas as coisas, pensamentos sobre o bem e o mal que há nas coisas; o que passou, passou; não penses neles, portanto, e tua mente se desligará do passado. Desse modo, os fatos passados são abolidos.1 Os fatos presentes estão aqui diante de ti; não te apegues a eles. Não se apegar significa não despertar sentimentos de amor ou ódio de qualquer espécie. Tua mente desligar-se-á então do presente e os fatos que se apresentam a teus olhos serão abolidos. Quando o passado, o presente e o futuro são tratados desse modo, eles desaparecem por completo. Quando os pensamentos vão e vêm, não os acompanhes: corta desse modo a tua mente perseguidora. Quando permaneceres (com pensamentos) não te detenhas neles e corta assim a permanência da mente. Uma vez assim liberto de pensamentos que permanecem, chegarás ao que se chama permanência em meio ao não-permanente. Se tens uma percepção perfeitamente clara de ti mesmo, poderás continuar a ter pensamentos; no entanto, o que continua são os pensamentos (e, quanto ao teu Inconsciente), ele não se ajusta nem à permanência nem à não-permanência. Se tiveres uma percepção perfeitamente clara de que a Mente não tem lugar para permanecer em parte alguma, a isso se chama ter uma percepção perfeitamente clara do seu próprio ser. Essa mesma Mente que não tem qualquer lugar onde permanecer é a Mente do Buda. Chama-se Mente da Emancipação, Mente da Iluminação, Mente Não-nascida, Vazio da Materialidade e da Idealidade. É o que nos Sutras se designa por Reconhecimento do Não-nascido… Tudo isso se compreende quando se tem em evidência o Inconsciente por toda a parte.”
A doutrina do Inconsciente aqui exposta é, em termos psicológicos, a doutrina da absoluta passividade ou da absoluta obediência. Também pode ser designada como ensinamento da humildade. Nossa consciência individual, imersa na Inconsciência, deve se assemelhar ao corpo de um homem morto, como costumava dizer S. Francisco de Assis para ilustrar a ideia da mais alta e perfeita obediência.
Tornar-se como um cadáver ou um pedaço de pau ou de pedra, embora de um ponto de vista deveras diverso, também parece ter sido uma comparação cara ao Zen-budismo.
No Huang-po Hsi-yun, encontramos a seguinte passagem:
P. — O que significa conhecimento mundano?
R. — De que adianta envolver-se em tais complexidades? (A Mente) é perfeitamente pura desde o princípio e não há necessidade de discuti-la com palavras. Simplesmente, não tenhas pensamentos de qualquer espécie; a isso se chama conhecimento imaculado. Em tua vida cotidiana, estejas sentado ou andando, de pé ou deitado, não permitas que a tua linguagem, qualquer que seja a sua natureza, se apegue às coisas do mundo; então, sejam quais forem as palavras que pronunciares ou a maneira por que piscares teus olhos, tudo será conhecimento imaculado. O mundo agora sofre um declínio geral e muitos estudantes do Zen se apegam às coisas materiais e mundanas. Afinal, que interesse têm eles pela Mente? Que a tua mente seja como o vácuo do espaço, como uma lasca de madeira morta, um pedaço de pedra, brasas dormidas, carvão consumido pelo fogo. Quando conseguires isso, poderás sentir alguma correspondência (com a verdadeira Mente). De outro modo, serás algum dia certamente repreendido pelo velho do outro mundo (…).
A recomendação de obediência feita por Inácio de Loyola, como fundamento de sua Ordem, difere naturalmente, em espírito, da ideia dos mestres zen quanto ao que se pode chamai de indiferença absoluta. Estes mestres são indiferentes às coisas que lhes acontecem porque as têm na conta de coisas que não tocam ao Inconsciente, o qual se encontra por trás da superfície da sua consciência. Por se firmarem intimamente no Inconsciente, todos os acontecimentos externos, inclusive os popularmente conhecidos como pertencentes à consciência, são como sombras. Sendo assim, o mestre zen permite ser atacado por elas enquanto o seu Inconsciente continua imperturbado. Na terminologia cristã, esse sofrimento é um sacrifício, um holocausto consumado para a glória de Deus.
William James, em Variedades da Experiência Religiosa (p. 312), cita a Introdução à Vida Mística de Lejeune: “Através da pobreza, ele imola as suas posses materiais; através da castidade, imola o seu corpo; através da obediência, completa o sacrifício e dá a Deus tudo o que ainda resta de si, seus dois bens mais preciosos: a inteligência e a vontade.” Através desse sacrifício do intelecto e da vontade, a disciplina católica se completa, quer dizer, o devoto se transforma num pedaço de pau, simples massa de carvão queimado e cinzas frias, e passa a se identificar com o Inconsciente. Essa experiência é narrada por escritores católicos em termos de um sacrifício feito a Deus, enquanto os mestres zen recorrem a uma fraseologia mais intelectual ou psicológica.
Citando ainda os “Aforismos” de Sto. Inácio: “Devo considerar-ME um cadáver sem inteligência e vontade; ser como uma massa de matéria que, sem oferecer resistência, se deixa colocar onde qualquer um bem entender, como a bengala na mão de um velho, que a usa de acordo com suas necessidades e a coloca onde lhe convém.” Esta é a atitude que ele aconselha a seus discípulos em relação à Ordem. A intenção da disciplina católica é completamente diferente da do Zen e, por isso, o conselho de Inácio adquire uma conotação inteiramente diversa na superfície. Mas, no que concerne à sua experiência psicológica, tanto os mestres zen como os líderes católicos almejam alcançar o mesmo estado mental, não sendo este outra coisa senão realizar o Inconsciente na nossa consciência individual.
O jesuíta Rodriguez dá um exemplo muito concreto (James, PP. 315-316) a respeito da virtude da obediência: “Em relação a tudo aquilo de que se vale, uma pessoa religiosa deve ser como uma estátua envolvida em vestes, mas que não sente tristeza e não opõe resistência quando de novo as despe. Desse modo é que deves sentir-te em relação às tuas roupas, a teus livros, à tua cela e a tudo o mais que usas…” Pois as roupas, os livros, etc. substituem as tristezas, as preocupações, as alegrias, as aspirações, etc., que são os vossos bens psicológicos, tanto quanto vossos bens materiais. Evitai usar estes bens psicológicos como se fossem propriedades privadas, e então sereis budistas que vivem no Inconsciente ou com o Inconsciente.
Alguém poderá argumentar que os bens materiais não são a mesma coisa que as funções psicológicas, que sem estas não existe Mente e que sem a Mente não há ser sensível. Mas eu lhes pergunto: sem estes bens materiais de que pensam precisar, como fica o corpo que têm? Sem o corpo, como fica a Mente? Afinal, essas funções psicológicas não vos pertencem, assim como não vos pertencem vossas roupas, vossas mesas, vossa família, vossos corpos, etc. Estais sempre controlados por eles, em vez de assumir vós mesmos o controle. Não sois donos nem mesmo desse corpo que vos parece tão íntimo. Estais sujeitos a nascer e a morrer. Ao corpo vossa mente está ligada da maneira mais estreita possível e isso parece escapar ainda mais ao vosso controle. Será que pela vida afora não serieis mais que um mero brinquedo de vossas sensações, emoções, imaginações, ambições, paixões, etc.?
Quando Hui-neng e outros mestres zen falam do Inconsciente, pode parecer que nos estejam aconselhando a nos tornarmos cinzas frias desprovidas de mentalidade, sem sentimentos, sem qualquer dos mecanismos interiores em geral associados à humanidade, a nos tornarmos mero nada, Vazio absoluto; mas, na realidade, este é o conselho dado por todos os religiosos, esta é a meta de toda disciplina religiosa. Excetuando as interpretações teológicas ou filosóficas, a meu ver, cristãos e budistas se referem à mesma experiência quando falam em sacrifício e obediência. A base da experiência zen é um estado de absoluta passividade interpretado dinamicamente, se isso for possível.
O Inconsciente é “seja feita a Vossa vontade”, e não a minha. Todos os feitos e acontecimentos, inclusive os pensamentos e os sentimentos que eu tenho ou que vêm ao meu encontro serio da vontade divina, enquanto de minha parte não houver apegos, desejos, e “minha mente estiver inteiramente desligada das coisas do passado, do presente e do futuro”, como foi dito acima. Este é também o espírito das palavras de Cristo, ao afirmar: “Não vos inquieteis com o dia de amanhã, pois o amanhã trará os seus cuidados; basta ao dia o seu próprio mal”. Substituam o “amanhã” por “futuro” e “dia” por “presente” e as palavras do Cristo são exatamente aquelas que diria um mestre zen, embora de modo mais filosófico. “O dia” não significaria, para o mestre zen, um período de vinte e quatro horas, como de hábito se concebe, mas um instante que passa, um pensamento que passa antes mesmo que se pronuncie uma palavra. O Inconsciente reflete, em sua superfície, todos esses instantes de pensamento que passam com a maior rapidez enquanto ele mesmo continua sereno e imperturbável. Esses pensamentos efêmeros constituem a minha consciência, mas na medida em que eu a considero como sendo “minha”, ela não apresenta qualquer conexão com o Inconsciente, havendo apegos, desejos, preocupações, desapontamento e toda a espécie de “males que estão neles”. Quando, porém, os pensamentos se acham em conexão com o Inconsciente, eles desaparecem da minha consciência; deixam de ser males e eu participo da serenidade do Inconsciente. Isso, posso dizer, é uma fase de absoluta passividade.
O conceito de Inconsciente dá margem a muitas interpretações falsas quando se supõe que ele indica ser a existência de uma entidade que se deva chamar “o Inconsciente”. Os mestres zen não admitem tal entidade por trás da nossa consciência empírica. Pelo contrário, são sempre contra hipóteses dessa natureza, tentando destruí-las de todas as maneiras possíveis. Em chinês, wu-hsin, “sem mente”, e wu-nien, “sem pensamento” ou “não-pensamento” são sinônimos tanto do Inconsciente quanto do estar inconsciente. Sendo assim, algumas vezes ME perco na tarefa de apresentar o sentido exato dos escritos chineses, cujas traduções constam deste ensaio. As frases chinesas cosem-se umas às outras de maneira muito lassa e cada ideograma que as compõe nada tem de flexível. Quando se lê o original, o sentido parece bastante claro, mas quando se trata de apresentá-lo em tradução, sente-se a necessidade de uma precisão maior para concordar com a construção da linguagem empregada, neste caso o português. Para tanto, é preciso violentar o espírito da língua chinesa original e, em vez de uma tradução, faz-se necessária uma exposição, uma interpretação ou lançar mão de paráfrases; consequentemente, parte-se o fio do pensamento tecido à volta dos ideogramas originais chineses, com todas as suas particularidades gramaticais e estruturais. Fica inevitavelmente perdido o que chamaríamos de efeito artístico do original.
No diálogo seguinte, tirado dos Sermões2 de Hui-ching, os argumentos se desenvolvem em torno da ideia de wu-hsin (não-mente = inconsciente), yung-hsin (usar a mente = esforço consciente), yu-hsin (ter uma mente = estar consciente), wu (como partícula privativa independente, “não”; como prefixo, “des”, “in”, etc.; como substantivo, “nada” ou “estado-de-não”3 ou “não-entidade”) e ch’eng-fo (”atingir o estado de Buda” ou “tornar-se Buda”). Hui-chung foi um dos discípulos de Hui-neng e, naturalmente, estava ansioso por desenvolver a doutrina do wu-hsin, que quer dizer wu-nien, termo mais usado por Hui-neng, seu Mestre. O diálogo começa com uma pergunta de Ling-chiao, um de seus novos alunos:
P. — Deixei o meu lar para ME fazer monge e aspiro atingir o estado de Buda. Como devo usar a minha mente?4
R. — O estado de Buda é atingido quando não há mente a ser empregada nessa tarefa.56
P. — Se não existe mente a ser empregada na tarefa, quem poderá atingir o estado de Buda?
R. — A tarefa se processa por si mesma por intermédio da não-mente. Também o Buda tem não-mente. (vide wu-hsin)
P. — O Buda dispõe de meios maravilhosos e sabe como libertar todos os seres; se ele tivesse não-mente, quem poderia libertar todos os seres?7
R? — Ter não-mente significa libertar todos os seres. Se ele vê algum ser que deva ser libertado, ele tem uma mente (yu-hsin) e, por certo, estará sujeito ao nascimento e à morte.8
P. — O estado de não-mente (wu-hsin), então, já está aqui, e como é que Sakyamuni apareceu no mundo e deixou tantos sermões? Isso é ficção?
R. — Com todos os ensinamentos que deixou, o Buda é wu-hsin (não-mente, inconsciente).9
P. — Se todos os ensinamentos dele provêm do seu estado de não-mente, também devem ser não-ensinamentos?
R. — Pregar é não (pregar) e não (pregar) é pregar. (Todas as atividades do Buda provêm do estado-de-não, isto é, do Sunyata, Vazio).
P. — Se os seus ensinamentos provêm do seu estado de não-mente, não seria o meu karma ativo a consequência de eu alimentar a ideia de uma mente (yu-hsin)?
R. — No estado de não-mente não existe karma. Mas (enquanto você aludir à ação do seu karma) o karma está aqui, e a sua mente está sujeita ao nascimento e à morte. Nesse caso, como pode haver não-mente em você?
P. — Se o estado de não-mente significa estado de Buda, Vossa Reverência já atingiu esse estado ou não?
R. — Quando não existe (wu) mente, quem fala a respeito de atingir o estado de Buda? Pensar que existe alguma coisa chamada estado de Buda, que é preciso alcançar, é alimentar a ideia de uma mente (yu-hsin); alimentar a ideia de mente é uma tentativa de pôr fim a uma coisa que flui (you-lou = asvara, em sânscrito); sendo assim, não há neste caso estado de não-mente.
P. — Se não existe um estado de Buda a ser atingido, Vossa Reverência tem uma função de Buda?10
R. — Onde a própria mente não existe, de onde vem o seu funcionamento?11
P. — Fica-se então perdido no estado-de-não (wu) exterior; não será esta uma visão completamente niilista?
R. — Desde o começo, não há (sujeito que vê e) visão;e quem pode dizer que isso é niilismo?
P. — Dizer que desde o começo nada é, não seria como cair no Vazio?
R. — Nem mesmo o Vazio é; onde está a queda?
P. — Nega-se (wu) tanto o sujeito como o objeto. Suponha que, de repente, chegasse aqui um homem e lhe cortasse fora a cabeça com uma espada. Isso deveria ser considerado real (yu) ou não-real (wu)?
R. — Isso não é real.
P. — Haveria alguma dor ou não?
R. — A dor também não é real.
P. — Não sendo real a dor, em que nível da existência ocorreria o renascimento depois da morte?
R. — Em morte nenhuma, em nascimento nenhum, em nível nenhum.
P. — Tendo chegado de forma absoluta ao estado-de-não, é-se o perfeito senhor de si mesmo; mas como você usaria a mente (yung-hsin) quando a fome e o frio o assaltassem?
R. — Quando sinto fome ME alimento e, quando sinto frio, ponho mais roupas.
P. — Se você se dá conta da fome e do frio, você tem mente (yu-hsin).
R. — Tenho uma pergunta a lhe fazer: a mente que você chama de mente (yu-hsin hsin) tem uma forma?
R. — Se você já sabia que a mente não tem forma, isso quer dizer que desde o princípio a mente não é, e como você pode falar em ter uma mente?
P. — Se você encontrasse um tigre ou um lobo nas montanhas, como usaria sua mente (yung-hsin)l
R. — Quando se avista, é como se não se tivesse avistado; quando se aproxima, é como se nunca se tivesse aproximado; e o animal (reflete) o estado de não-mente. Mesmo um animal selvagem não lhe fará mal.
P. — Portar-se como se nada estivesse acontecendo, ficar em estado de não-mente, completamente independente de todas as coisas, que nome teria um ser assim?
R. — Vajra, o Mahasattva (Vajra, o Grande Ser) é o seu nome.
P ? — E qual a sua forma?
R. — Desde o princípio ele não tem forma.
P. — Se ele não tem forma, o que é conhecido pelo nome de Vajra, o Grande Ser?
R. — Chama-se Vajra, o Grande Sem Forma.
P. — Que méritos tem?
R. — Quando os seus pensamentos, mesmo que seja um só deles, entram em correspondência com Vajra, você toma-se capaz de apagar todas as ofensas graves que cometeu enquanto atravessava os ciclos de nascimento e morte durante kalpas tão numerosos quantos são os grãos de areia do Ganga. Os méritos deste Vajra, o Grande, são imensuráveis; não há palavra que a boca profira capaz de expressá-los, não existe mente capaz de descrevê-los; mesmo que se viva tantas idades quantos são os grãos de areia no Ganga e se fale sobre eles, não será possível contá-los.
P. — O que quer dizer “estar com um só pensamento em correspondência com ele”?
R. — Quando se esquece da memória e da inteligência, fica-se em correspondência com ele.12
P. — Quando se esquece da memória e da inteligência, quem se corresponde com os Budas?
R. — Esquecer significa estado-de-não (wang chi wu). Estado-de-não significa estado de Buda (wu-chi-fo).
P. — Chamar o estado-de-não de estado-de-não está muito bem; mas por que chamá-lo de Buda?
R. — O estado-de-não é o Vazio, e o Buda também é o Vazio. Por isso, diz-se que o estado-de-não significa o estado de Buda e que o estado de Buda é o estado-de-não.
P. — Se não há nada de nada, o que há para nomear?
R. — Não há nenhum nome para ele.
P. — Existe alguma coisa parecida com ele?
R. — Não há coisa alguma que se pareça com ele, o mundo nada conhece de igual.
Fatos futuros ainda não chegaram e não há necessidade de te preocupares com eles; não os procures. Assim, tua mente se desligará do futuro. ↩
Transmissão da Lâmpada (ed. Kokyoshoin), fasc. 28, fls. 103-04. ↩
Em inglês, no-ness. Não se trata, aqui, de acentuar a negatividade enquanto virtude negadora, mas sim de acentuar a condição representada pelo “não”. No-ness é uma coisa positiva, ainda mais para os zen-budistas. A palavra “negatividade”, pelo contrário, enfatiza o fato de algo ser negativo (N. do T.). ↩
Yung-hsin, “usar a mente”, isto é: “aplicar a mente”, “treinar-se em”. ↩
Enquanto houver esforços conscientes para cumprir uma tarefa, a própria consciência trabalha contra eles e a tarefa não se cumpre. Só quando todos o traços dessa consciência se apagam é que se atinge o estado de Buda. ↩
Em inglês, a construção desta sentença mostra bem como Suzuki consegue manipular nessa língua, por meio da conotação, o conceito de wu-hsin, o que, infelizmente, não é possível reproduzir na tradução: “Buddhahood is attained when there is no mind which is to be used for the task” ( O estado de Buda é atingido quando, nessa tarefa, existe uma não-mente para ser empregada) (N. do T.). ↩
Em termos filosóficos, como poderia o Inconsciente realizar alguma coisa? Como assumiria o grande trabalho religioso de transportar todos os seres até a outra margem do Nirvana? ↩
Há dois planos de vida: um é o plano da consciência (yu-hsin), o outro é o plano do Inconsciente (wu-hsin). As atividades que pertencem ao primeiro plano são governadas pela lei do karma, enquanto que as do segundo plano o são pelas do Inconsciente, do Prajna não-discriminativo, e se caracterizam por um estado de ausência de intenções, e, portanto, da ausência de méritos. A autêntica vida religiosa começa nesse ponto e frutifica no plano da consciência. ↩
Quer dizer, o Buda, com todas as suas atividades mundanas, vive entre nós no plano do Inconsciente, em um mundo sob os estados de não-esforço e de não-mérito, ao qual não se podem aplicar categorias teleológicas. ↩
Como ficou dito, a filosofia budista usa os dois conceitos de Coipo e Uso na explicação da realidade. Ambos são inseparáveis; onde houver funcionamento deve haver Corpo e onde houver Corpo, o Uso deste inevitavelmente se fará conhecer. Mas quando se declara que não existe estado de Buda, onde, então, estará o seu funcionamento? Como, então, um abade zen pode ter algo a ver com o Budismo? ↩
Tudo começa no Inconsciente, tudo está no Inconsciente e tudo se afunda no Inconsciente. Não existe estado de Buda, portanto não existe funcionamento dele. Se um pensamento é desperto e alguma forma de funcionamento é percebida, existe uma discriminação, um apego, um desvio do caminho do Inconsciente. O mestre fica firme no Inconsciente e recusa-se a passar para o plano da consciência. Isto faz com que o monge noviço fique perplexo. ↩
”Esquecer-se da memória e da inteligência” é uma expressão singular. “Esquecido”, wang, é usado frequentemente para expressar a ideia de Inconsciente. Esquecer tanto a memória como a inteligência, que constituem a essência de nossa consciência empírica, é voltar ao Inconsciente, não acalentar pensamento algum sobre a mente, rejeitar ao mesmo tempo yung-hsin e yu-hsin, o que constitui o estado de não-mente. Trata-se da repetição da ideia exposta antes: voltar para o Inconsciente é atingir o estado de Buda. ↩