D. T. SUZUKI, D. T.. Mística: cristã e budista. Tr. David Jardim. Belo Horizonte: Itatiaia
- David Jardim
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David Jardim
Quando Deus fez o homem, colocou-lhe na alma sua obra prima, equilibrada, ativa, sempiterna. Foi uma obra tão grande que não poderia ser senão a alma e a alma não poderia ser senão a obra de Deus. A natureza de Deus, seu ser e a Divindade, todos dependem de sua obra na alma. Abençoado, abençoado seja Deus que faz sua obra na alma e que ama sua obra! Aquela obra é amor e amor é Deus. Deus ama a si mesmo e sua própria natureza, seu ser e a Divindade e, no amor que tem a si mesmo, ama todas as criaturas, não como criaturas, mas como Deus. O amor que Deus tem a si mesmo contém seu amor por todo o mundo.1
A afirmação de Eckhart do amor de Deus por si mesmo, que “contém seu amor por todo o mundo”, corresponde, de certo modo, à ideia budista da iluminação universal. Quando Buda alcançou a iluminação, convém lembrar, percebeu que todos os seres, tanto os sensíveis quanto os insensíveis, já se encontravam na própria iluminação.
A ideia da iluminação pode fazer com que, sob certos aspectos, os budistas pareçam mais impessoais e metafísicos que os cristãos. O budismo pode, assim, ser considerado mais científico e racional que o cristianismo, que se encontra pesadamente sobrecarregado de toda a sorte de acessórios mitológicos. Procede-se, pois, agora, entre os cristãos, um movimento visando a despir a religião de seu desnecessário apêndice histórico. Embora seja difícil prever até que ponto tal movimento será bem sucedido, o fato é que existem, em todas as religiões, certos elementos que podem ser chamados de irracionais e que, em geral, se relacionam com a necessidade de amor dos seres humanos. A doutrina budista da iluminação não é, afinal de contas, um frio sistema de metafísica, como parece a alguns. O amor também entra na experiência da iluminação como um de seus componentes, pois, de outro modo, ela não poderia abranger a totalidade da existência. A iluminação não significa fugir do mundo, e sentar-se de pernas cruzadas no alto da montanha, baixando-se os olhos, calmamente, para a massa humana condenada. Tem mais lágrimas do que se imagina.
Deves conhecê-lo [Deus] sem imagem, sem semelhança e sem meios. — “Para que eu conheça Deus assim, porém, sem coisa alguma intermediária, nada mais devo ser que ele, e ele nada mais deve ser do que eu”. — Digo: Deus deve ser o próprio eu, eu o próprio Deus, tão completamente que este ele e este eu sejam um só “é”, nesta “existencialidade”, trabalhando eternamente; mas, enquanto este ele e este eu, para o entendimento Deus e a alma, não forem um único aqui, um único agora, o eu não pode trabalhar nem se confundir com aquele ele.2
O que é a vida? A existência de Deus é minha vida, mas, se assim é, o que é de Deus deve ser meu e o que é meu deve ser de Deus. Deus é minha “existencialidade” e nada mais nada menos que isso. O justo vive eternamente com Deus, a par com Deus, nem mais abaixo nem mais ao alto. Toda a sua obra é feita por Deus e Deus por ela.3
Como se vê pelas citações acima, era natural que os cristãos ortodoxos da época acusassem Eckhart de “herético” e que ele se defendesse. Talvez devido às nossas peculiaridades psicológicas, há sempre duas tendências opostas na maneira humana de pensar e de sentir: extrovertida e introvertida, externa e interna, superficial e profunda, objetiva e subjetiva, exotérica e esotérica, tradicional e mística. A oposição entre essas duas tendências ou temperamentos é, muitas vezes, demasiadamente profunda e forte para qualquer forma de conciliação. É isso que leva Eckhart a queixar-se que seus adversários se mostravam incapazes de compreender seu ponto de vista. Assim, diz ele: “Se pudesses ver com o meu coração, compreenderias minhas palavras, mas são verdadeiras, pois a própria verdade as ditou”.4 Agostinho é ainda mais rude que Eckhart: “O que é isto para mim, embora ninguém o compreenda!”5