Daisetz Suzuki — MÍSTICA: CRISTÃ E BUDISTA
Deus e Ser
Ser é Deus. . . Deus e ser são a mesma coisa — ou, do contrário, Deus seria feito de outro e assim não seria Deus ele próprio. . . Tudo que existe tem o fato de ser através de ser e procedendo de ser. Portanto, se o ser é algo diferente de Deus, as coisas derivam seu ser de algo diferente de Deus. Além disso, nada há anterior ao ser, porque aquele que confere o ser cria e é criador. Criar é tirar o ser do nada.
Eckhart é, com muita frequência, metafísico, e nos leva a especular como seus ouvintes recebiam seus sermões — ouvintes que, segundo se supõe, deviam ser bem pouco eruditos, ignorando o latim e toda a teologia escrita em latim. Esse problema do ser e da criação do mundo por Deus, tirando-o do nada, deve ter intrigado muito aquela gente. Os próprios eruditos talvez não tivessem compreendido Eckhart, pois sabemos que eles não estavam tão enriquecidos pela experiência quanto ele. O simples pensamento ou raciocínio lógico jamais conseguiriam esclarecer problemas de profunda significação religiosa. As experiências de Eckhart são profundas, fundamental e fartamente enraizadas em Deus como Ser, que é, ao mesmo tempo, ser e não ser: ele vê nas coisas “mais insignificantes” entre as criaturas de Deus todas as glórias de sua “existencialidade” (isticheit). A iluminação budista não é nada mais que a experiência da “inexistencialidade” ou “identidade” (tathata) que tem em si mesma todos os valores possíveis Cguna) que nós humanos podemos conceber.
A característica de Deus é ser. O filósofo diz que uma criatura pode dar vida a outra. No ser, no mero ser, reside tudo que existe em tudo. Ser é seu primeiro nome. Defeito significa falta de ser. Toda a nossa vida deve ser o ser. Enquanto nossa vida consiste em ser, estará em Deus. Enquanto nossa vida for débil mas recebida como ser, este ultrapassa tudo de que a vida pode jamais se vangloriar. Não tenho dúvidas disso, que se a alma tivesse a mais remota noção do que o ser significa, jamais ela se afastaria dele por um instante. A coisa mais trivial percebida por Deus, uma flor olhada por Deus, por exemplo, seria uma coisa mais perfeita que o universo. A coisa mais desprezível presente em Deus como ser é melhor que o conhecimento angélico.
Esta passagem talvez pareça muito abstrata para a maioria dos leitores. O sermão foi feito, segundo se diz, no dia consagrado aos “santos mártires que foram mortos com a espada”. Eckhart começa expondo suas ideias acerca da morte e do sofrimento, que têm um termo, como tudo mais que pertence a este mundo. Continua, depois, dizendo que “nos cumpre emular a morte em ausência de paixão (nuiht betrüeben), diante do bem e do mal e do sofrimento de qualquer natureza, e cita São Gregório: “Ninguém recebe tanto de Deus quanto o homem que está inteiramente morto”, porque “a morte lhes (aos mártires) dá a existência — perdem a vida, mas encontram a existência”. A alusão de Eckhart à flor contemplada por Deus nos faz lembrar a entrevista de Nansen com Rikko, no qual o mestre do Zen também alude a uma flor no pátio do mosteiro.
Quando encontro tais afirmações é que aumenta a minha convicção de que as experiências cristãs não são, afinal de contas, diferentes das budistas. A terminologia é tudo que nos separa e nos impele a um prejudicial esperdício de energia. Devemos, contudo, pesar a questão cuidadosamente e verificar se existe, de fato realmente, algo que nos afaste uns dos outros e se existe alguma base para nossa edificação espiritual e para o progresso de uma cultura universal.