Tema central de Dostoiévski: o ser humano (Berdiaeff)

Berdiaeff, L’esprit de Dostoïevski. (1945) [1974] 

A preocupação exclusiva de Dostoiévski, o único tema ao qual dedicou sua força criativa, é o homem e seu destino. Ele foi antropologista e antropocentrista a um grau indescritível. O problema do homem o absorveu até a frenesi, o devorou. A seus olhos, o homem não é um simples fenômeno natural, um fenômeno da mesma ordem que todos os outros, ainda que mais elevado: para ele, o homem é um microcosmo, o centro do ser, um sol ao redor do qual tudo gira. É no homem que se encerra o enigma do universo, e resolver a questão do homem é resolver a questão de Deus. Toda a obra de Dostoiévski representa uma intercessão em favor do homem e de seu destino—uma intercessão que chega ao ponto de lutar com Deus e que, por fim, se resolve pela entrega desse destino humano ao Deus-Homem, ao Cristo.

Uma concepção tão exclusivamente antropológica só é possível em um mundo cristão, em uma época cristã da [44] história. Nada disso existia no mundo antigo. Foi o cristianismo que orientou o mundo para o homem e fez dele o sol do universo. Dostoiévski, portanto, tratou do homem de maneira profundamente cristã. Por isso, ele é um grande escritor cristão—aquele que denunciará o vício essencial do humanismo, sua impotência para encontrar uma solução para a tragédia do destino humano.

Assim, a obra de Dostoiévski não conhece nada além do homem, e no próprio homem ela não vê nada que o ligue ao mundo exterior, a um fluxo de vida objetivo. O espírito humano existe sozinho, e só ele interessa ao escritor. Strakhov, que conheceu Dostoiévski intimamente, escreveu sobre ele: “Toda a sua atenção estava voltada para as pessoas; ele buscava exclusivamente compreender sua natureza e seu caráter. As pessoas o interessavam, apenas as pessoas, com sua estrutura da alma, seu modo de vida, seus sentimentos e pensamentos.” E, durante uma viagem que Dostoiévski fez ao exterior: “Nem a natureza, nem as memórias históricas, nem as obras de arte o prendiam particularmente.”

Sem dúvida, em cada um de seus romances, ele pintou a cidade—a cidade com seus bairros infectos, seus bares repugnantes, seus quartos alugados e fétidos. Mas a cidade é apenas a atmosfera em que o homem vive, um episódio de seu destino trágico; a cidade está impregnada pelo homem que a habita, é o pano de fundo sobre o qual ele se move. O homem, de fato, desviou-se da natureza, rompeu suas [45] raízes e caiu nos antros repulsivos das cidades, onde se perde em tormentos. Pois a cidade é o lugar de seu destino trágico.

São Petersburgo, por exemplo—essa São Petersburgo que Dostoiévski sentiu e descreveu de maneira tão espantosa—é uma visão, um fantasma gerado pelo homem errante e renegado. Entre os nevoeiros dessa cidade fantasma, nascem pensamentos loucos, amadurecem planos criminosos. Nessa atmosfera, tudo se concentra e se acumula em torno do homem—do homem arrancado de suas origens divinas. E todas as coisas que o cercam—a cidade e sua atmosfera peculiar, seus cortiços e seus móveis monstruosos, os bares sujos e fétidos, toda a trama exterior do romance—não passam de sinais, símbolos do mundo espiritual interior do homem, um reflexo de sua tragédia íntima.

Nada que seja exterior, que pertença à natureza, à sociedade ou aos costumes, possui em Dostoiévski uma realidade em si mesmo. Esses bares onde os “garçons russos” discutem problemas universais são, eles próprios, apenas projeções do espírito humano, da dialética ideológica tão estreitamente ligada ao destino desse espírito. A complexidade da trama, a diversidade exterior dos personagens que se atraem ou se repelem desesperadamente em um furacão de paixão refletem, em sua profundidade interior, o espírito humano único. Eles são necessários para trazer à luz os momentos secretos [46] do destino—mas tudo gira em torno do enigma humano.

 

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