Tenho algo a acrescentar posteriormente sobre tais geografias míticas, mas, no momento, deixem-ME lembrar-lhes de alguns outros exemplos do que pode ser chamada a concepção “criativa” da morte e do ato de morrer. Com efeito, quando a morte é interpretada como uma passagem para um outro, superior, modo de existência, ela se torna o modelo paradigmático de todas as modificações significativas que ocorrem na vida humana. A assimilação feita por Platão da Filosofia a uma antecipação da morte tornou-se, com o tempo, uma metáfora digna de respeito. Tal não foi o caso, contudo, das experiências místicas, desde os êxtases xamanísticos àqueles experimentados pelos grandes místicos das religiões mais complexas. Tanto um hindu quanto um santo cristão “morrem” para a vida profana: são considerados “mortos para o mundo”; e o mesmo se dá com os grandes místicos judeus e maometanos.
Todas essas homologias criativas – símbolos e metáforas causados pelo estabelecimento do ato de morrer como modelo paradigmático de qualquer transição significativa – enfatizam a função espiritual da morte: o fato de que a morte transforma o homem num espírito, seja alma, espectro, corpo etéreo ou forma semelhante. Por outro lado, essas transformações espirituais são expressas através de imagens e símbolos relacionados com o nascimento, renascimento ou ressurreição, ou seja, com uma vida nova e, algumas vezes, mais rica do que a anterior. Esse paradoxo já está implícito na interpretação primitiva do ato de morrer como um começo de unia nova modalidade de existência.
Com efeito, há uma ambivalência curiosa, se não uma contradição latente, em muitos padrões rituais de confrontação com a morte. A força espiritualizadora da morte pode ser exaltada entusiasticamente, noas o amor pelo corpo e pela vida encarnada torna-se mais forte. Embora um homem australiano tome-se “completamente espiritual e sagrado” com o advento da morte, conforme salientou Lloyd Warner, essa transformação não é recebida com júbilo. Ao contrário, quando se dá uma morte, ela é sentida como uma catástrofe. Há a lamentação das mulheres, o laceramento de cabeças para causar sangue e outras manifestações de dor e desespero que podem atingir um verdadeiro frenesi. “A dor e a ira coletiva são controladas apenas pela certeza e confirmação enfática de que o morto será vingado.” (Eliade)