caráter

gr. ethos, hexis visões várias do seu papel (FEPeters)


(gr. charakter, ethos; lat. character; in. Character; fr. Caractère; al. Charakter; it. Caratteré).

Propriamente o sinal, ou o conjunto de sinais, que distingue um objeto e permite reconhecê-lo facilmente entre os outros. Em particular, o modo de ser ou de comportar-se habitual e constante de uma pessoa, à medida que individualiza e distingue a própria pessoa. Nesse sentido, dizemos que “Uma pessoa tem um caráter bem marcado” ou “bem definido”, no sentido de que o seu modo de agir revela orientações habituais e constantes. Em sentido oposto, falamos de “falta de caráter” ou “caráter fraco”, “mau caráter” ou “caráter inconstante”, comportamento habitualmente devido mais a opções causais e caprichosas do que a uma orientação determinada e constante.

Os antigos possuíam essa noção. Heráclito diz que o caráter (ethos) de um homem é o seu destino (Fr. 119, Diels). E o aristotélico Teofrasto deixou-nos, no texto intitulado Os caracteres, a descrição de trinta tipos de caráter morais (importuno, vaidoso, descontente, fanfarrão, etc), descritos precisamente com base em suas manifestações habituais. Esquecida durante a Idade Média, quando essa palavra serviu sobretudo para designar a indestrutibilidade da ordenação sacerdotal (Tomás de Aquino, S. Th., III, q. 65, a. 1 ss.), essa noção foi retomada no séc. XVII por La Bruyère (Les caracteres, 1687) e voltou a ser usada. Kant utilizou-a na tentativa de conciliar a causalidade natural e a causalidade livre. Cada causa eficiente deve ter um caráter, isto é, “uma lei da sua causalidade, sem a qual não seria causa”. Um objeto do mundo sensível tem, em primeiro lugar, um caráter empírico, pelo qual os seus atos, como fenômenos, estão vinculados causalmente aos outros fenômenos, em conformidade com as leis naturais. Mas o mesmo objeto também pode ter um caráter inteligível, “pelo qual ele é a causa daqueles atos como fenômenos, mas, por si mesmo, não está sujeito a nenhuma condição sensível e não é fenômeno”. Sobre o caráter inteligível pode-se dizer “que dá início por si mesmo aos seus efeitos no mundo, sem que a ação comece nele mesmo”; e com essa distinção, Kant acredita ter conciliado liberdade e natureza (Crít. R. Pura, Antinomias da razão pura, § 3). Com menos metafísica (e mais clareza), em Antropologia, ele distingue um caráter físico, que é o sinal distintivo do homem como ser natural, e um caráter moral, que é o sinal do homem como ser racional, provido de liberdade. O caráter físico diz “o que se pode fazer do homem; o caráter moral diz o que o homem é capaz de fazer de si mesmo” (Antr., II, a). Schopenhauer utilizou a distinção kantiana entre caráter empírico e caráter inteligível para negar a liberdade: tudo o que o homem faz seria a manifestação de um caráter inteligível inato e imutável (Die Welt, I, § 55; Neue Paralipomena, § 220).

A distinção kantiana de dois caráter, um natural e imutável e outro moral e livre, é totalmente abandonada na antropologia contemporânea, que, todavia, dá grande destaque à noção de caráter. Mas na interpretação dessa noção, pode-se dizer que a antropologia contemporânea assume um ou outro dos dois conceitos em que Kant distinguira essa noção, isto é, ou entende o caráter como uma formação natural e inevitável que o homem traz consigo e não pode modificar, ou o entende como uma formação devida às escolhas do homem e, portanto, livre e modificável. Faremos menção apenas a algumas das principais posições, quer num sentido, quer no outro. A teoria dos tipos psicológicos de Jung pertence à primeira tendência porque considera o caráter como uma orientação predominantemente inconsciente, devida a disposições orgânicas ou ao fundamento instintivo. O caráter de um homem é a direção em que ocorre o encontro entre esse homem e o mundo, ou entre esse homem e a sociedade: é o complexo de atitudes ou disposições para agir ou reagir em certa direção. Ora, no encontro entre o homem e o mundo, são possíveis duas atitudes fundamentais: ou o homem procura dominar o mundo, isto é, os objetos externos, assumindo uma atitude ativa, positiva, criadora, ou então procura simplesmente defender-se dele, fechando-se em si o mais possível; a primeira atitude é a extrovertida, que produz abertura, socialidade, isto é, frequência de relações com os outros; a segunda é a introvertida, que indica fechamento, timidez e, em todo caso, relutância em relacionar-se com os outros e com as coisas (Tipos psicológicos, 1913). Essa classificação de Jung ficou célebre e é comu-mente empregada mesmo sem referência às suas bases teóricas. A mesma noção de caráter como dado irredutível, estrutura originária e congênita, não modificável pelas escolhas do indivíduo, é compartilhada por Le Senne, para quem o caráter é “o sistema invariável das necessidades que se encontram, por assim dizer, no limite entre o orgânico e o mental” (Traité de caractérologie, p. 1). Só que, para Le Senne, o caráter não constitui a totalidade do homem: é só um dos elementos da sua personalidade e esta compreende, além do caráter, também elementos livremente adquiridos, que podem contribuir para especificar o próprio caráter em um sentido ou em outro. O caráter é, portanto, um limite objetivo, intrínseco à própria personalidade, da escolha que a personalidade pode fazer livremente de si mesma; mas como limite é algo de congênito e, em si mesmo, de imutável. Portanto, para Le Senne, a determinação devida ao caráter não é necessitante, apesar de originária e relativamente imutável. Embora nesse ponto Le Senne se apoie num fundamento estabelecido por Adler (de que falaremos adiante), para ele a noção de caráter é uma determinação ou complexo de determinações originárias e imodificáveis, isto é, continua presa a um significado que não distingue caráter de temperamento. Esse conceito de caráter faz da liberdade e do determinismo na personalidade humana duas forças distintas e reciprocamente autônomas: uma reside no eu e a outra no caráter (ou no temperamento), reproduzindo, em linguagem diferente, o dualismo kantiano de caráter inteligível e caráter empírico.

A doutrina de Adler, porém, fugiu a esse dualismo. Para Adler, o caráter é a manifestação objetiva, verificável através da experiência social, da própria personalidade humana. Não só o caráter é um “conceito social’, no sentido de que só se pode falar de caráter referindo-se à conexão de um homem com o seu ambiente, mas também os traços ou as disposições que constituem o caráter são verificáveis apenas socialmente. As manifestações do caráter “são semelhantes a uma linha diretiva que adere ao homem como um esquema e lhe permite, sem muita reflexão, exprimir a sua personalidade original em cada situação” (Menschenkenntniss, 1926, II, 1; trad. it., PP. 150 ss.). Essas manifestações não exprimem nenhuma força ou substrato inato, mas são adquiridas, ainda que muito cedo. Substancialmente, o caráter é o modo como o homem toma posição diante do mundo natural e social; e Adler baseia sua avaliação em dois pontos de referência: a vontade de poder e o sentimento social, que, com sua ação recíproca, constituiriam os aspectos básicos do caráter. “Trata-se”, diz ele, “de um jogo de forças, cuja forma de manifestação exterior caracteriza o que nós chamamos de caráter” (Ibid., 1926, II, 1; trad. it., p. 176). Scheler, por sua vez, faz uma distinção radical entre pessoa e caráter A pessoa é o sujeito dos atos intencionais e, portanto, é o correlato de um mundo, mais precisamente do mundo em que ela vive. O caráter, ao contrário, é a constante hipotética x que se assume para explicar as ações particulares de uma pessoa. Portanto, se um homem age de forma não correspondente às deduções que tínhamos extraído da imagem hipoteticamente assumida do seu caráter, devemos estar dispostos a mudar essa imagem. Mas a pessoa não pode mudar: portanto, não pode ser afetada pelas mudanças de caráter, assim como não é afetada pela doença psíquica que somente a oculta (Formalismus, PP. 501 ss.). Essa separação nítida entre caráter e pessoa, que, em Scheler, se deve ao primado metafísico que ele atribui à pessoa, não encontra equivalência na antropologia contemporânea, cujos traços, mais comuns e importantes no que se refere à doutrina do caráter, podem ser assim recapitulados: 1) o caráter é a manifestação objetiva da personalidade humana ou é essa mesma personalidade no seu aspecto objetivo, da forma como é apreendida pela experiência humana comum ou pelas técnicas de investigação da personalidade; 2) o caráter distingue-se do temperamento porque não é um dado puramente orgânico como este último e porque não é um elemento imutável e necessitante, mas resultado das opções feitas por um indivíduo, consistindo nas constantes observáveis das suas opções; 3) tais opções não são absolutamente livres nem necessárias, mas condicionadas por elementos orgânicos, ambientais, sociais etc; e, em suas constantes observáveis, delineiam um projeto de comportamento no qual coincidem o caráter e a personalidade do homem. (Abbagnano)


O conjunto dos traços distintivos que constituem a figura psicológica ou moral de uma pessoa ou de um grupo. — Diversos testes permitem diferenciar os caracteres, principalmente o teste de Dembo, que consiste em colocar uma pessoa voluntariosa em um círculo de giz para fazê-la apanhar uma cadeira que está justamente fora de seu alcance, e então estudar suas reações específicas de fracasso (cólera, gracejo etc). O problema fundamental é o de conhecer as causas que contribuem para a formação de um caráter: há de saída o temperamento, nosso acervo fisiológico; Goethe, ao dizer que “o caráter do homem é seu destino”, identificava caráter e temperamento. Na verdade, o caráter é especificamente psicológico, a ponto de Alain dizer, ao contrário: “Um caráter é um juramento”; Santo Inácio era naturalmente violento, tendo sido santo por pura vontade, “por caráter”. Entre as teses inatistas, que consideram o caráter como vindo desde o nascimento, e as teses empiristas, para as quais o caráter se forma com a experiência (a educação, o meio, a vontade), situam-se as teses da psicanálise: o caráter se “fixaria” no curso das experiências que marcam a primeira infância; o indivíduo seria marcado definitivamente por sua infância. Com efeito, o temperamento, a infância, a educação, a experiência são elementos a serviço de nossa liberdade; nossa vida psicológica e moral pode evoluir e progredir indefinidamente. (V. caracterologia.) (Larousse)

Nicola Abbagnano