É um engano pensar que esse simbolismo cosmológico restringia-se a palácios, templos e cidades reais, e que tais símbolos eram inteligíveis apenas a teólogos eruditos, a ricos e poderosos soberanos e administradores e aristocratas. Por razões óbvias, eu fiz referência a alguns dos exemplos mais famosos de construções arquitetônicas; mas encontra-se o mesmo simbolismo cosmológico na estrutura de qualquer casa, cabana ou tenda das sociedades tradicionais, mesmo entre os mais arcaicos e “primitivos”.

Com efeito, não é possível, geralmente, falar da casa sem fazer referência à cidade, ao santuário, ou ao mundo. Em vários casos, o que se diz da casa se aplica igualmente à aldeia ou à cidade. As múltiplas homologias – entre cosmos, terra, cidade, templo, palácio real, casa e cabana – enfatizam o mesmo simbolismo fundamental – cada uma dessas imagens revela a experiência existencial de ser-no-mundo, mais exatamente de situar-se num mundo organizado e dotado de sentido (isto é, organizado e dotado de sentido porque criado por seres sobrenaturais). O mesmo simbolismo cosmológico, formulado em termos espaciais, arquitetônicos, está subjacente nos conceitos de casa, cidade e universo. A casa dos Dyak, por exemplo, supõe que se conheça o mito cosmogônico, isto é, que se saiba que a criação se deu como resultado de um combate entre dois princípios polares opostos, a divindade suprema, Mahatala e a cobra das águas primordiais. Precisa-se desse conhecimento porque cada casa dos Dyak é uma réplica do modelo de casa primitivo: a casa está simbolicamente erigida no dorso da cobra d’água, seu telhado corresponde à primeira montanha em que Mahatala erigiu o seu trono, e um guarda-sol representa a árvore da vida. Do mesmo modo, observa-se o dualismo cosmológico da religião, cultura e sociedade indonésias na estrutura de suas casas, com divisão ritualmente consagrada entre “masculino” e “feminino”.

Um simbolismo cósmico semelhante está implícito na construção da casa chinesa. Supõe-se que a abertura no telhado, chamada “janela para o céu”, realmente permita a comunicação com os deuses. Os chineses aplicavam o mesmo termo à abertura da tenda mongol. Este termo – “janela para o céu” – também é usado para designar uma chaminé. A tenda mongol apoia-se num poste central que emerge através de uma abertura. Este poste é simbolicamente identificado com o “Pilar do Mundo”, ou seja, com o axis mundi. Em vários lugares do mundo tem-se representado esse axis mundi por um poste central, esteio da casa, ou por estacas isoladas, chamadas “pilares do mundo”. Em outras palavras, encontra-se o simbolismo cósmico na própria estrutura das habitações comuns. A casa é uma imago mundi. Uma vez que se concebia o céu como uma vasta tenda apoiada num poste central, fazia-se a analogia entre este suporte da tenda ou da casa e os “Pilares do Mundo”.

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Talvez o exemplo mais interessante seja encontrado entre os falis, um povo do Camerão Setentrional. Para eles, a casa é a imagem do universo e, consequentemente, do microcosmo representado pelo homem; mas a casa também reflete as fases do mito cosmogônico. Em outras palavras, a casa não é uma construção estática, mas tem um “movimento” correspondente aos diferentes estágios do processo cosmogônico. A localização das unidades de construção da casa (o poste central, as paredes, a teto), assim como a posição dos móveis e ferramentas, está relacionada com os movimentos dos habitantes e sua localização na casa. Quero dizer, com isso, que os membros da família mudam seus lugares na habitação de acordo com a estação, a hora do dia e as várias modificações de seu “status social ou familiar”.

Penso que o que já disse sobre o significado das habitações humanas basta para que certas conclusões se tornem evidentes. Exatamente como a cidade ou o santuário, a casa é santificada, total ou parcialmente, por um simbolismo cosmológico ou ritual. Essa é a razão pela qual o fato de estabelecer-se em lugar – fundando uma aldeia ou simplesmente construindo uma casa – representa uma decisão séria, uma vez que envolve a existência de cada homem; em suma, ele deve criar seu próprio mundo e assumir a responsabilidade de conservá-lo e renová-lo. Não se troca de moradia facilmente, pois não é fácil abandonar nosso próprio mundo. A casa não é um objeto, “uma máquina dentro da qual se vive”; é o universo que o homem constrói para si mesmo, imitando a criação paradigmática dos deuses, a cosmogonia. O ato de construir e o de instalar numa nova moradia são, de certa forma equivalentes a um novo começo, uma nova vida. E cada começo repete o começo primordial, quando o universo viu a luz pela primeira vez. Mesmo as sociedades modernas, com o seu alto grau de dessacralização, as festividades e o júbilo que acompanham o ato de estabelecer-se numa casa nova, ainda preservam a lembrança da exuberância festiva que, há muito tempo, marcava o incipit vita nova. (Eliade)


Deve portanto ter existido outra coisa na origem, o que é fácil compreender se nos lembrarmos de que, tradicionalmente, todo edifício é construído segundo um modelo cósmico; enquanto inexistia qualquer distinção entre “sagrado” e “profano”, ou seja, enquanto o ponto de vista profano não tinha nascido em decorrência de um enfraquecimento da tradição, foi sempre e em toda parte assim no que diz respeito às próprias casas particulares. A casa era então uma imagem do Cosmo, isto é, um “pequeno mundo” fechado e completo em si mesmo; e se observarmos que ela é “enquadrada” (ou “demarcada”) pelo meandro (labirinto), exatamente da mesma forma que a Loja, cuja significação cósmica não foi perdida, é “enquadrada” pela “corrente de união”, a identidade dos dois símbolos torna-se evidente por inteiro: em ambos os casos trata-se apenas, em suma, de uma representação do próprio “quadro” do Cosmo. (Guénon)

René Guénon