Poder-se-ia dizer que, na China antiga, todas as tendências do pensamento religioso apresentavam em comum determinado número de ideias fundamentais. Citemos, em primeiro lugar, a noção do Tao como princípio e fonte do real, a ideia das alternâncias regidas pelo ritmo Yin-Yang, e a teoria da analogia entre o macrocosmo e o microcosmo. Esta última era aplicada em todos os planos da existência e da organização humanas: anatomia, fisiologia e psicologia do indivíduo, instituições sociais, habitações e espaços consagrados (cidade, palácio, altar, templo, casa). Mas, enquanto alguns (em primeiro lugar, os taoistas) cuidavam que uma existência desenvolvida sob o signo do Tao e em perfeita harmonia com os ritmos cósmicos era possível tão-somente no começo (ou seja, na fase que antecedeu a organização social e o desenvolvimento da cultura), outros consideravam que esse tipo de existência era realizável sobretudo numa sociedade justa e civilizada.
O mais célebre entre estes últimos, e o mais influente, foi certamente CONFÚCIO (aprox. 551-479) M. Vivendo num período de anarquia e injustiça, afligido pela miséria e pelo sofrimento geral, compreendeu CONFÚCIO que a única solução era uma reforma radical do Governo, efetuada por líderes esclarecidos e aplicada por funcionários responsáveis. Todavia, ele próprio não logrou obter um cargo importante na administração, e dedicou a vida ao ensino. Foi CONFÚCIO quem primeiro exerceu a profissão de professor particular. Em que pese ao seu sucesso junto aos numerosos discípulos, pouco tempo antes de morrer, estava convencido de que a sua missão fracassara redondamente. Entretanto, os discípulos conseguiram transmitir, de geração em geração, a essência do seu ensinamento. E, 250 anos depois da sua morte, os soberanos da Dinastia Han (aprox. 206-220 A.D.) decidiram entregar aos confucionistas a administração do Império. Como consequência desse fato, a doutrina do Mestre orientou os serviços públicos durante mais de dois mil anos.
CONFÚCIO não é propriamente um líder religioso. As suas ideias, e sobretudo as dos neoconfucionistas, são estudadas, em geral, nos compêndios de história da filosofia. Mas, direta ou indiretamente, CONFÚCIO teve profunda influência na religião chinesa. Na verdade, a própria fonte da sua reforma moral e política é religiosa. Por outro lado, ele não rejeita nenhuma ideia tradicional importante, nem o Tao, nem o deus do Céu, nem o culto dos antepassados. Além disso, exalta e revaloriza o papel religioso dos ritos e comportamentos costumeiros.
Para CONFÚCIO, o Tao foi estabelecido por decreto celeste: “Se o Tao é praticado, isso se deve ao decreto do Céu” (Luen yu = Analectos, XIV, 38). Pautar a própria conduta pelo Tao é conformar-se à vontade do Céu. CONFÚCIO reconhece a preeminência do Céu (T’ien). Para ele, não se trata de um deus otiosus; T’ien interessa-se por cada indivíduo isoladamente e ajuda-o a tornar-se melhor. “Foi o Céu que produziu em mim a virtude (tö)” (V, 22), declara. “Com 50 anos de idade, compreendi a vontade do Céu” (II, 4). Com efeito, o Mestre acreditava estar incumbido pelo Céu de executar uma missão. Como tantos outros entre os seus contemporâneos, cuidava que o caminho do Céu é exemplarmente ilustrado pelos heróis-civilizadores Yao e Chun e pelos reis da Dinastia Tcheu, Wen e Wu (VIII, 20).
CONFÚCIO declarava que se devem efetuar os sacrifícios e os outros rituais tradicionais, porque fazem parte da vida de um “homem superior” (chün-tzu), de um “fidalgo”. O Céu gosta de receber sacrifícios; mas também lhe agradam um comportamento moral e, sobretudo, um bom Governo. As especulações metafísicas e teológicas a propósito do Céu e da vida depois da morte são inúteis (V, 12; VII, 20; XI, 11). O “homem superior” deve preocupar-se primeiro com a existência humana concreta, tal como é vivida aqui e agora. No que se refere aos espíritos, CONFÚCIO não lhes nega a existência, mas contesta-lhes a importância. Embora respeitando-os, recomenda o Mestre, “conservai-os a distância. Nisso reside a sabedoria” (VI, 18). Quanto a devotar-se alguém ao serviço deles, indaga: “Se não sois capaz de servir aos homens, como podereis servir aos espíritos?” (XI, 11).
A reforma moral e política elaborada por CONFÚCIO constitui uma “educação total”, isto é, um método capaz de transformar o indivíduo comum em “homem superior” (chün-tzu). Qualquer pessoa pode tornar-se um “homem verdadeiro”, desde que aprenda o comportamento cerimonial em conformidade com o Tao, em outras palavras, desde que pratique corretamente os ritos e os costumes (li). Entretanto, a prática não é alcançada com facilidade. Não se trata, em absoluto, de um ritualismo exclusivamente exterior, nem, tampouco, de uma exaltação emotiva intencionalmente provocada quando se efetua o ritual. Todo comportamento cerimonial correto deflagra uma força mágico-religiosa temível. CONFÚCIO evoca o famoso Soberano-Sábio Shun: “portava-se de maneira extremamente simples, com gravidade e reverência, o rosto voltado para o sul (a postura ritual dos soberanos) — e era tudo” (isto é: os negócios do reino desenvolviam-se em conformidade com a norma; XV, 4). Porque o Cosmo e a sociedade são regidos pelas mesmas forças mágico-religiosas ativas no homem. “Desde que se tenha um comportamento correto, não há necessidade de dar ordens” (XIII, 6). “Governar pela virtude (tö) é como ser a Estrela polar: fica-se no mesmo lugar en-quando todas as outras estrelas a homenageiam girando em torno dela” (II, 1).
Um gesto efetuado segundo a regra constitui uma nova epifania da harmonia cósmica. É evidente que aquele que é capaz de tal comportamento já não é o indivíduo comum que era antes de ser instruído; o seu modo de existência é radicalmente transformado; é um “homem perfeito”. Uma disciplina que busca a “transmutação” dos gestos e dos comportamentos em rituais, conservando-lhes, ao mesmo tempo, a espontaneidade, possui, sem dúvida, uma intenção e uma estrutura religiosa. Sob esse prisma, pode-se comparar o método de CONFÚCIO com os ensinamentos e as técnicas pelas quais Lao-tsé e os taoistas julgavam poder recuperar a espontaneidade inicial. A originalidade de CONFÚCIO é ter buscado a “transmutação” em rituais espontâneos dos gestos e condutas indispensáveis numa sociedade complexa e altamente hierarquizada.
Para CONFÚCIO, a nobreza e a distinção não são inatas: obtêm-se através da educação. Um homem torna-se um “fidalgo, um cavalheiro” pela disciplina e por certas aptidões naturais (IV, 5; VI, 5; etc.). A bondade, a sabedoria e a coragem são as virtudes específicas da nobreza. A suprema satisfação encontra-se no desenvolvimento das suas próprias virtudes. “Quem é realmente bom nunca é infeliz” (IX, 28). Contudo, a verdadeira carreira para um fidalgo é a de governante (VII, 33). Para CONFÚCIO, tal como para Platão, a arte de governar é o único meio de assegurar a paz e a felicidade da maioria dos indivíduos. Mas, como acabamos de ver, a arte de governar, como qualquer outro ofício, comportamento ou ato significativo, é resultado de uma instrução de tipo religioso. CONFÚCIO venerava os heróis-civilizadores e os grandes reis da Dinastia Tcheu; eram eles os seus modelos exemplares. “Transmiti o que ME ensinaram sem nada acrescentar de meu. Fui fiel aos antigos e os amei!” (VII, 1). Alguns estudiosos vislumbraram nessas declarações a nostalgia de uma época irremediavelmente terminada. E, no entanto, ao revalorizar a função ritual dos comportamentos públicos, CONFÚCIO inaugurou um novo caminho: mostrou a necessidade, e a possibilidade, de recuperar a dimensão religiosa do trabalho secular e da atividade social. (HCIR)